A metáfora de “A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa, uma obra prima do conto brasileiro, é o esquecimento ou alheamento de tudo. Uma tentativa de buscar um mundo de sonhos, de afastamento das coisas reais para viver numa outra dimensão. É a história de um homem que, sem mais, nem menos, para o estranhamento da mulher, dos filhos e dos amigos, manda fazer uma canoa, despede-se e parte para uma viagem sem retorno. Uma viagem que não é uma viagem. É um desligamento da vida, das coisas materiais, das relações pessoais. Ele estava ali, a vista, mas distante de tudo e de todos.
A alienação é constante na literatura. Em Rei Lear , de Shakespeare, o pai resolve, em vida, repartir seu reino entre suas filhas. Uma delas, a sua preferida, considera a sua decisão insensata. Ofendido por isso, ele a deserda. No final , já demente, é abandonado pelas filhas herdeiras e é amparado pela filha deserdada.
Dom Quixote de La Mancha , ao embriagar-se das novelas de cavalarias no século XVI e resolver sair pelo mundo como um cavaleiro andante, também buscou a sua terceira margem do rio para se desvincular do mundo real que o oprimia. Dom Quixote, como personagem, vivia entre o real e o imaginário e por vezes interpretando o real através das suas fantasias. Cervantes faz uma profunda ironia com o seu personagem, pois em nossos dias, muita gente vê, tal como na época do autor, monstros em moinhos de ventos. Pessoas que se dizem abduzidas por seres extraterrenos, com visões de naves espaciais que nunca foram comprovadas. A loucura pode ser vista como positiva, quando o louco reproduz os interesses de segmentos da sociedade. Assim, muitos loucos estão na mídia, fazendo proselitismo de suas idéias religiosas, políticas ou mesmo artísticas.
O personagem de Cervantes tem um comportamento intelectualmente racional quando procura explicar a importância dos cavaleiros andantes na defesa da ordem, dos injustiçados e das donzelas desamparadas, mas quando vê o real a partir da ficção, cai em descrédito.
O seu fiel escudeiro, um mentecapto interesseiro, que mesmo tendo consciência de que o seu amo está mais para a loucura do que para a sanidade, continua insistindo em acompanhá-lo, na perspectiva de que possa algum dia receber alguma recompensa. O escudeiro é também esperto o suficiente para enganar Quixote para evitar que este faça mais loucuras. Mas é também um insano obcecado pela ambição.
Outra obra genial que trata da loucura ou da perda do discernimento é o Alienista de Machado de Assis. O médico Simão Bacamarte, de tanto ver insanidade nos outros, acaba percebendo-se também insano. O gênio de Machado deixa então a dúvida se a insanidade e a normalidade não estariam tão próximas que às vezes podem se confundir na complexidade das relações humanas.
Quixote, Bacamarte e o Velho da “terceira margem do rio”, não seriam personagens que vivem entre nós nas escolas, nas empresas, na política, no governo, nas ruas, nos bares? A normalidade parece ser relativa e assim pode depender do ponto de vista. Quantas vezes não refletimos sobre a sanidade de conhecidos, parentes e amigos? Não seria também uma atitude de modéstia refletir sobre nossos próprios atos? Isso, convenhamos, é bem mais complicado, pois nossa vaidade não deixa chegar ao ponto de admitirmos que nem sempre somos normais. Normais? Afinal o que é normalidade?
Renato Ladeia
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