Nunca mais saboreei galinha-d’angola depois que abandonei o hábito de passar as férias no interior, na casa de parentes. Na verdade nem me lembro mais do sabor dessa galinha. Imagino que é um pouco mais dura do que o frango comprado no mercado e tem um leve sabor de caça (será?). As galinhas-d’angola eram criadas nas fazendas, soltas e viviam em bandos; elas conseguem voar um pouco mais do que as galinhas comuns, empoleirando nas árvores próximas as casas. As galinhas d’angola vieram mesmo do continente africano, trazidas pelos portugueses durante a colonização e se espalharam pelo país de norte a sul e são também conhecidas por sakué ou guiné.
Quando menino ia passar as férias na fazenda de um tio no interior de São Paulo e uma das coisas que a minha memória auditiva gravou para sempre foi o “to-fraco, to-fraco”. Fazenda sem esse som para mim não é fazenda, pois não consegue despertar em mim as sensações de férias, de natureza, de aventura, de liberdade. Minha mãe, logo depois de instalada na fazenda, já dizia: “Ah que vontade de comer galinha-d’angola”. Meu tio prometia que para o jantar ele iria providenciar. Assim, quando ia entardecendo, ele pegava a sua velha espingarda e saia para o quintal. As crianças, por medida de segurança, eram todas recolhidas na casa grande. Ouvia-se ao longe os estampidos e barulho de coisa caindo pelos lados do abacateiro. Logo depois o velho aparecia com duas galinhas-d’angola e as entregava para as mulheres na cozinha. A pontaria dele era certeira. Um tiro para cada uma gabava-se ele.
No jantar a galinha era servida ao molho pardo ou simplesmente cozida para o regalo de minha mãe. “Não há galinha melhor do que esta. Ah! se eu pudesse criaria galinhas d’angola em casa”. É claro que isso era impossível, pois essas galinhas são meio selvagens, vivem em bandos e poderiam perturbar a vizinhança. São também mães pouco cuidadosas, não se importando muito com seus filhotes. Elas põem seus ovos sob várias camadas de palha e somente os de cima são chocados, por isso é difícil de encontrar seus ovos.
Foi ouvindo essas histórias que resolvi, nos devaneios dos meus oito anos de idade, caçar ovos de galinha de angola. Campeei toda manhã pelas proximidades da casa da fazenda até descobrir uma galinha botando. Aproximei-me cuidadosamente e fiquei a espreita até que ela saísse para apanhar os ovos, colocá-los no boné e aparecer como um heroi diante dos meus primos e primas. Como a galinha estava demorando, resolvi pegar um pau para espantá-la. Mas o pau que vi se mexeu ao tocá-lo. Não era pau coisa nenhuma, mas uma grande cobra. Escapei por pouco graças ao barulho da galinha que deixou o réptil em dúvida para qual lado daria o seu bote.
Achou os ovos? Perguntou minha prima. Ainda assustado não quis nem conversa e dei uma desculpa qualquer. Naquele dia e no que se seguiu fiquei ainda assombrado com a possibilidade de ter morrido picado por uma cobra venenosa, cujas histórias há muito ouvia falar. Contava-se que um empregado da fazenda foi picado por uma jararaca e como naquele tempo não havia carro, até arrear o cavalo e atrelá-lo à carroça, não houve tempo para chegar até a cidade, distante dezoito quilômetros da fazenda. O pobre homem morreu no caminho deixando mulher e filhos pequenos. Mas no jantar ninguém entendeu porque eu não comi da galinha, mas também não contei. Há razões que a própria razão desconhece.
Num dia desses, acompanhado da família, tentei resgatar o sabor da galinha de angola e fomos a um restaurante especializado em pratos africanos. A decoração era esmerada, com objetos e fotografias do velho continente. Os talheres, pratos e copos eram todos de madeira africana, conforme rezava o cardápio. Sentamos e fomos gentilmente atendidos por uma garçonete negra vestida a caráter. “Vocês tem galinha-d’angola?” Perguntei ansioso. Ela respondeu afirmativamente e fizemos o pedido.
Logo depois a moça retornou dizendo: “Infelizmente a galinha-d’angola acabou. Vocês aceitariam outro prato? Temos...”
Apesar da gentileza da moça, recusamos a oferta e desistimos de comer no restaurante africano, pois o objetivo era mesmo comer a tal galinha, que eu cantava em prosa e verso. Acabamos indo para uma casa de massas, por sugestão de minha mulher. Lá enquanto degustávamos uma deliciosa pasta à bolonhesa, fiquei refletindo sobre a distância cultural entre a Itália, África e a galinha-d’angola preparada pela dona Isabel, mulher do meu tio, uma portuguesa trasmontana, que usou temperos tipicamente brasileiros. Assim me dei conta de que o Brasil de minha infância está se acabando e o sabor da galinha-d’angola foi substituído por um molho tipicamente italiano.
Renato Ladeia
Renato Ladeia
Gostosa história. Aqui em casa elas passam voando por cima do telhado. Tá duro de acertar uma. Quando eu conseguir te chamo. Grande abraço. Dédo.
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