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OS ÓCULOS


Os óculos fazem parte das pessoas, é um objeto que integra a personalidade dos indivíduos que utilizam. O jeito de arrumá-lo no rosto, de limpá-lo, de olhar... Usar óculos torna as pessoas mais cautelosas, controladas e até mais elegantes.
      Escrevo sobre os óculos porque encontrei, ao remexer velhos papéis, velhos livros, antigas gavetas, os que pertenceram ao meu pai. Estavam velhos e desgastados pelo tempo, mas ao tocá-los senti uma vibração como se estivesse tocando  algo vivo e não uma coisa inerte constituída de plástico, metais e lentes de cristal, além do trabalho humano, nele impregnado. Ele foi usado ao longo de muitos anos e viu muita coisa passar pelas suas lentes. Durante anos, todas as manhãs, após o café, com eles ia até o portão e observava os transeuntes, amigos e desconhecidos. Via as rugas que marcavam seus antigos companheiros, via as crianças que passavam ao colo de mães que eram filhas ou noras de seus amigos. Viu velhos conhecidos e amigos passarem em cortejos fúnebres e as velhas lentes ficaram embaçadas pelas lágrimas.
        Com eles viu pela última vez seus filhos, noras e netos. Contemplou a casa que serviu de abrigo a si e a sua companheira e filhos durante quase cinqüenta anos. As velhas paredes com várias camadas de tinta que foram se sobrepondo a cada natal, quando a pintava quando ainda tinha forças. Avaliou as partes da casa que foram ampliadas, que custaram muito suor e as parcas economias.
      Por eles seus olhos contemplaram cada almoço de natal e a mesa farta que o enchia de um orgulho quase infantil. Viu por eles as ferramentas com as quais ganhou o pão de cada dia e labutou na construção do seu lar. Com elas ajudou vizinhos e amigos emprestando as suas múltiplas habilidades, sem aceitar ou pedir nada em troca, apenas à amizade e respeito.
Com eles viu seus filhos crescerem e darem os primeiros passos em busca da autonomia na vida, buscando seus próprios caminhos. Viu os diplomas obtidos com muito sacrifício pelos filhos e molhou-os de lágrimas de emoção ao perceber que tinha cumprido sua missão. Missão essa que nunca ninguém lhe cobrou, mas que ele tinha certeza de que fazia parte de sua existência.
       Ele também viu por eles, o último dia raiar e o último por do sol. Suas lentes o acompanharam na última caminhada pelas ruas do bairro, quando foi comprar o seu último pão, quando deu seu último cumprimento aos amigos e conhecidos que encontrou pelo caminho. Por eles observou a paisagem urbana que se modificou tanto desde quando para lá se mudou. Ao ver que desapareceram as vegetações que compunham o horizonte, hoje repleto de prédios e casas, sentiu-se num mundo estranho, em contínua mudança. Através deles viu o seu último café fumegante na xícara antes de sorvê-lo vagarosamente, fazendo um pequeno barulho.
      Velhos óculos, antigos e saudosos olhares. Quem dera se tivessem sido registrados em suas lentes tantos momentos, alegres, tristes ou simplesmente poéticos? Mas meu olhar por eles conserva muitas lembranças, lembranças que carrego nas lentes de uma alma que não esquece e mesmo com os olhos fechados, as imagens se projetam em minhas retinas fatigadas.

Renato Ladeia

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