De repente as luzes começaram a se apagar e a escuridão invadiu todos os espaços, esparramando-se pelas avenidas, praças, vielas, prédios e quintais como uma nuvem que desceu dos céus. Mas aos poucos algumas pequenas e tímidas luzes foram surgindo e tive a sensação de que voltávamos para o século XIX, antes da eletricidade ser trazida pelos ingleses. Foi como se aos poucos, depois do susto inicial, as pessoas estivessem saindo do estado de letargia ou preguiça tecnológica e começassem a buscar soluções para o caos. As velhas, antiquadas e poluidoras velas de parafina, com cheiro de velório, sempre presentes nas gavetas como lembranças de outros apagões, ganharam a cena e ajudaram as pessoas a se olharem numa outra perspectiva. Os penteados, as maquiagens, as roupas, deixaram de ter importância. O que passou a valer de verdade foram as vozes, as palavras, os gestos que se faziam presentes como num teatro de sombras.
As ruas da Vila Madalena, reduto boêmio da cidade estavam salpicadas de pequenas luzes de velas acesas que se destacavam no negrume da noite. A lua, escondida, não deu o ar de sua graça para pratear a noite dos enamorados e poetas. Alguns românticos saíram à rua para procurar a lua, que sorrateira, fazia um jogo de esconde-esconde entre as nuvens. Um homem de cabelos brancos e quase calvo saiu apressado com medo do caos do trânsito que já se anunciava, pois os semáforos deixaram de funcionar e deixou sobre a mesa do bar uns versos rascunhados: " Chora-Lua no cerrado, manda-chuva te contar...". Fiquei imaginando que fosse um poeta do interior que vivera nos velhos tempos das lamparinas e lampiões e se inspirara naquele momento com as lembranças da ave de rapina, de hábitos noturnos que talvez ainda habite os cerrados paulistas. Talvez ele se lembrasse dos versos rascunhados e completasse o poema ou o teria esquecido para sempre. Fiquei com aquele guardanapo na mão sem saber o que fazer com ele até que tive a idéia de entregá-lo ao garçom para que colocasse no quadro de avisos onde o poeta pudesse resgatá-lo e completar o poema. O garçom não se entusiasmou com o meu pedido, pois estava mais preocupado em evitar que algum freguês escapulisse sem pagar e o colocou no bolso. Quem teria interesse por um guardanapo de papel com algumas palavras escritas?
A escuridão que se espalhou pela antiga vila paulistana demorou em partir e enquanto isso os boêmios inveterados aproveitavam para saborear, das mesas dos bares, a cidade escura e os bons sambas de outrora só para provar que a vida continuava, com ou sem luz elétrica. Numa mesa ao lado, alguém se lembrou que na escura paulicéia desvairada do século XIX, o poeta Castro Alves poderia ter escrito os versos: “Se existe um povo que a bandeira empresta para cobrir tanta infâmia e cobardia/ e deixa-se rolar nesta festa, de manto impuro e bacante fria” Não sei se o fato é ou não verdadeiro, mas onde há poetas, a vida está em outras dimensões, as dimensões da sensibilidade, do imaginário.
No dia seguinte, ainda sonolento da noite boêmia e das dificuldades para chegar em casa, acordei com o noticiário sobre o apagão, que alguns preferiam chamar de black out. Culpou-se a natureza, com seus temporais. Como ela não pode se defender ficou o dito pelo não dito e vamos esperar o próximo. Quem sabe o homem da rua, desses que perambulam solitários pelos bares, descubra um pouco mais de poesia desta cidade sem ser ofuscado pela luz elétrica.
Renato Ladeia
As ruas da Vila Madalena, reduto boêmio da cidade estavam salpicadas de pequenas luzes de velas acesas que se destacavam no negrume da noite. A lua, escondida, não deu o ar de sua graça para pratear a noite dos enamorados e poetas. Alguns românticos saíram à rua para procurar a lua, que sorrateira, fazia um jogo de esconde-esconde entre as nuvens. Um homem de cabelos brancos e quase calvo saiu apressado com medo do caos do trânsito que já se anunciava, pois os semáforos deixaram de funcionar e deixou sobre a mesa do bar uns versos rascunhados: " Chora-Lua no cerrado, manda-chuva te contar...". Fiquei imaginando que fosse um poeta do interior que vivera nos velhos tempos das lamparinas e lampiões e se inspirara naquele momento com as lembranças da ave de rapina, de hábitos noturnos que talvez ainda habite os cerrados paulistas. Talvez ele se lembrasse dos versos rascunhados e completasse o poema ou o teria esquecido para sempre. Fiquei com aquele guardanapo na mão sem saber o que fazer com ele até que tive a idéia de entregá-lo ao garçom para que colocasse no quadro de avisos onde o poeta pudesse resgatá-lo e completar o poema. O garçom não se entusiasmou com o meu pedido, pois estava mais preocupado em evitar que algum freguês escapulisse sem pagar e o colocou no bolso. Quem teria interesse por um guardanapo de papel com algumas palavras escritas?
A escuridão que se espalhou pela antiga vila paulistana demorou em partir e enquanto isso os boêmios inveterados aproveitavam para saborear, das mesas dos bares, a cidade escura e os bons sambas de outrora só para provar que a vida continuava, com ou sem luz elétrica. Numa mesa ao lado, alguém se lembrou que na escura paulicéia desvairada do século XIX, o poeta Castro Alves poderia ter escrito os versos: “Se existe um povo que a bandeira empresta para cobrir tanta infâmia e cobardia/ e deixa-se rolar nesta festa, de manto impuro e bacante fria” Não sei se o fato é ou não verdadeiro, mas onde há poetas, a vida está em outras dimensões, as dimensões da sensibilidade, do imaginário.
No dia seguinte, ainda sonolento da noite boêmia e das dificuldades para chegar em casa, acordei com o noticiário sobre o apagão, que alguns preferiam chamar de black out. Culpou-se a natureza, com seus temporais. Como ela não pode se defender ficou o dito pelo não dito e vamos esperar o próximo. Quem sabe o homem da rua, desses que perambulam solitários pelos bares, descubra um pouco mais de poesia desta cidade sem ser ofuscado pela luz elétrica.
Renato Ladeia
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