Pular para o conteúdo principal
A MOENDA

Dona Elisa morava na casa em frente a nossa. Meus pais achavam que ela não regulava bem da cabeça, pois falava sozinha, andava vestida de modo estranho e gostava muito de crianças. Quando eu digo que ela gostava de crianças estou me referindo a brincar como criança, conversar ou agir como tal. Uma vez ela reuniu várias crianças da rua e, para desespero dos pais, levou todas para um longo passeio. Lembro-me que fomos até uma rodovia, distante uns dois quilômetros de nossa casa. Até lá fomos passando por locais incríveis para os meus olhos de menino, que conhecia aquela paisagem de forma bem distante. Meu olhar sonhava aquelas paragens e eu pude descobrir que tudo aquilo era maior do que o meu olhar.
Na volta, depois de algumas horas, todos cansados, mas felizes, recebemos uma repreensão dos pais, que estavam todos reunidos na esquina à espera da “raptora” de crianças. Pobre dona Elisa, precisou ouvir o que não queria do seu marido, o seu Sebastião, um homem muito sério e sisudo, pouco afeito a brincadeiras.
Numa outra ocasião, ela convidou-nos, eu e meus irmãos, para conhecer o seu quintal. Era um pequeno espaço entre a casa dela, que ficava nos fundos, e a casa vizinha. Para nossos olhares era um lugar fantástico, uma descoberta incrível. Naquele pequeno espaço, de mais ou menos 25 metros quadrados, dona Eliza plantava flores, algumas árvores frutíferas, que não me lembro quais e uma touceira de cana. Havia também uma moenda, construída em madeira, para fazer garapa, que foi uma sensação. A nossa anfitriã cortou alguns caules de cana e começou a espremê-las para preparar uma deliciosa garapa. Estávamos antevendo aquela delícia quando nossa mãe, ciosa de suas responsabilidades, passou-nos uma reprimenda e nos privou de saborear o suco de cana da dona Elisa, que ficou desconcertada. De nada adiantou ela pedir para que minha mãe esperasse para que tomássemos a sua garapa. Minha mãe foi dura, implacável e levou-nos para casa, revoltados como convém a crianças entre sete e doze anos.
Passamos semanas comentando a ruindade de nossa mãe ao nos privar do pequeno quintal de nossa vizinha, que carinhosamente, nos recebeu. Minha mãe alegou que aquela moenda não era limpa e poderíamos ter ficado doentes caso tivéssemos tomado a garapa. Com certeza não acreditamos nessa história, mas com o tempo fomos esquecendo e nunca mais visitamos a dona Elisa. Aliás fomos expressamente proibidos e sabíamos que desobedecer significava o sério risco de um rigoroso castigo.
Em algumas coisas minha mãe era inflexível e uma delas era com relação freqüentar as casas dos nossos vizinhos. Por mais que se pedisse, ela jamais concordava em que nós brincássemos nas casas dos nossos vizinhos. Na rua era até tolerado, pois morávamos numa viela sem saída, com apenas três casas de cada lado, mas nunca nas casas alheias. Era uma obsessão da qual ela não fazia qualquer tipo de concessão. Hoje penso que a sua forma de agir a protegia contra as investidas da garotada da vizinhança em brincar em nossa casa. Ao deixar bem claro, em alto e bom tom, que não gostava que nós aborrecêssemos a vizinhança, dava um sinal claro que esperava reciprocidade.
Mas a dona Elisa, com o seu jeito meio maluco e seu quintal repleto de segredos e surpresas, que nunca consegui desvendar, ficaram em minha memória. Coisas como a moenda de madeira e a garapa escorrendo por um funil de lata, continuam sem solução, como uma equação mal compreendida na aula de matemática. São coisas de adultos que as crianças não conseguem entender e eles sentem um prazer sádico em complicar.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

JOSÉ DE ARRUDA PENTEADO, UM EDUCADOR

Num dia desses  visitava um sebo para passar o tempo, quando, surpreso, vi o livro Comunicação Visual e Expressão, do professor José de Arruda Penteado. Comprei o exemplar e pus-me a recordar os tempos de faculdade em que ele era professor e nosso mentor intelectual. Era uma figura ímpar, com seu vozeirão impostado e uma fina ironia. Rapidamente estreitamos contato e nas sextas-feiras saíamos em turma para tomar vinho e conversar. Era um dos poucos professores em que era possível criticar, sem medo, a ditadura militar. Penteado era um educador, profissão que abraçara com convicção e paixão. Seu ídolo e mestre foi o grande pedagogo Anísio Teixeira, que ele enaltecia com freqüência em nossos encontros semanais. Defendia um modelo de educação voltado para uma prática socialista e democrática, coisa rara naqueles tempos. Depois disso, soube que estava coordenando o curso de mestrado em Artes Visuais da Unesp e ficamos de fazer contato com o ilustre e inesquecível mestre. Mas o t...

A ROCA DE FIAR

Sempre que visitava antiquários, gostava de ficar observando as antigas rocas de fiar e imaginando que uma delas poderia ter sido de uma das minhas bisavós e até fiquei tentado a comprar uma para deixá-la como relíquia lá em casa. Por sorte, uma amiga de longa data, a Luci, ligou um dia desses avisando que tinha um presente para nós, que ficaria muito bem em nossa casa. Para minha surpresa, era uma roca de fiar, muito antiga, que ela ganhou de presente. Seu patrão se desfez de uma fazenda e ofereceu a ela, entre outros objetos, uma roca, que ela gentilmente nos presenteou. Hoje uma centenária roca de fiar está presente em nossa casa e, além de servir como objeto de decoração, é a alegria do Tom, meu neto, que fica encantado ao girar a roda da roca. Para ele é um divertimento quando vem nos visitar e passa algumas horas em nossa companhia. Ele grita e ri de modo a ouvir-se de longe, como se a roca fosse a máquina do mundo. Recordo-me, quando criança, que minha mãe contava história...

BARRA DE SÃO JOÃO

Casa  onde Pancetti morou Em Barra de São João acontece de tudo e não acontece nada. As praias são de tombo e as ondas quebram violentamente na praia. Quase ninguém as freqüenta a não ser algum turista desavisado, preferencialmente os paulistas. Mas o lugarejo é tranqüilo, com ruazinhas arborizadas com velhas jaqueiras e com muitas primaveras nos jardins, dando uma sensação gostosa de paz e tranqüilidade há muito perdidas nas grandes metrópoles. Foi lá que nasceu o poeta Casimiro de Abreu e onde foi sepultado conforme seu último desejo. O seu túmulo está no cemitério da igreja, mas dizem que o corpo não está lá e que foi “roubado” na calada de uma das antigas noites do século dezenove. A casa do poeta, restaurada, fica às margens do Rio São João é hoje um museu onde um crânio humano está exposto e alguns afirmam que é do poeta dos “Meus Oito Anos”. Olhei severamente para o crânio e questionei como Shakespeare em Hamlet: “To be or not to be”, mas fiquei sem resposta. O cas...