Era ainda criança e não entendia bulhufas de futebol, mas sabia que o Brasil estava enfrentando os seus mais ferozes inimigos. Meu pai bradava e esmurrava o radio que ficava sobre um aparador fixado na parede. Seu rosto ficava vermelho e tenso e dava a impressão de que teria um surto a qualquer momento. Enfim, terminada a partida, ele se sentiu aliviado e ria como uma criança que ganha um novo brinquedo. Era um dia bonito e ensolarado de inverno e todos os vizinhos saíram para a rua para comemorar. Alguns soltaram fogos e o compadre do papai, seu Luiz Marson, havia feito um belo balão verde e amarelo para soltá-lo depois da vitória na final. O balão subindo foi apoteótico. Todos vibraram e acompanharam o balão até que ele desaparecesse no céu azul.
Meu pai contava histórias sobre a copa de 1950, quando o Brasil perdeu para o Uruguai na final, em pleno Maracanã. Lá em Lavínia, interior de São Paulo, meu tio Agripino atirou o rádio no meio do mato de tão furioso que ficou. Infelizmente esse tio morreu sem ver a grande desforra de 1958.
Só sei que a partir daquela copa virei um torcedor fanático da seleção canarinha e queria saber tudo sobre o esquadrão de ouro composto por Gilmar, De Sordi, Bellini, Nilton Santos, Zito e Orlando. Garrincha, Didi, Vavá, Pelé e Zagallo. Já fazia as contas para a próxima copa que seria no Chile. Em 1962, algumas horas depois, assistíamos aos jogos pela televisão. Não era a mesma coisa do que ver ao vivo, mas dava para curtir os eletrizantes dribles do Mané Garrincha, entortando os adversários de forma impiedosa. Era uma alegria só. Ia para um lado, o adversário ia para o outro. Era uma humilhação que enchia nossos corações de alegria e patriotismo. Éramos nós que estávamos representados pelas pernas tortas daquele monstro sagrado do futebol. O Pelé estava contundido e não foi possível repetir a dobradinha de 1958, quando os dois craques emocionaram os gringos nos campos da Suécia.
Em 1970 estava dividido entre o amor pela pátria e o ódio dos ditadores. O general Médici era um ardoroso torcedor da seleção e para mim parecia claro que os militares usariam a possível vitória para alienar o povo com aquele slogan fascista do “Ame-o ou deixe-o”. Resisti o quanto pude e procurei não assistir aos jogos para não cair em tentação. Mas a seleção jogou muita bola. As jogadas de Pelé, Rivelino e Jairzinho eram impagáveis e na final eu estava lá torcendo com toda a família. Meus amigos do movimento estudantil, mais radicais do eu, estavam torcendo contra a seleção para que os militares não usassem a vitória como trunfo da ditadura.
Depois da vitória, com o coração alegre e solto, fui para o centro da cidade para espairecer. A festa ganhava as ruas. O povo dançava, pulava e gritava. Homens, mulheres, jovens e crianças faziam a festa, era uma catarse total. Eis que vejo meus companheiros de luta contra a ditadura militar: Paulon, Alemão, Rubinho e Zoca, sambando e gritando, como crianças. Também eles haviam sido cooptados pela alegria do esporte mais popular do país. O imaginário de nação, de povo, falou mais forte. As emoções construídas durante toda a infância ouvindo e cantando o hino nacional junto com o hasteamento da bandeira, chegavam à flor da pele e era impossível escondê-las sob mantos ideológicos.
Depois do jejum de doze anos, eis que uma nova seleção entusiasma. Zico, Falcão, Eder e Sócrates, principalmente o último, um jogador consciente que lutava pela democracia dentro dos clubes, representavam o resgate do futebol arte, com toques belos toques de bola. A derrota para a Itália doeu fundo. Amanheci de cabeça inchada e prometi que nunca, nunca mais torceria com tanto entusiasmo e paixão.
Assim procurei me convencer de que a associação entre futebol, que tem um conteúdo emocional muito forte como esporte e a identidade nacional é uma carga explosiva para os corações já envelhecidos. A idéia de nação é uma utopia construída pelos estados modernos. Tinha um sentido mais claro durante as lutas pela autodeterminação dos povos, mas depois perderam o sentido original. Todos sabem que o povo brasileiro é um conceito abstrato, pois não se pode dizer que os nossos caboclos dos profundos grotões do Brasil, são os mesmos brasileiros que compõem a classe média paulistana. A idéia de nação é muito mais emocional do que racional. E viva para as emoções!
Mas o futebol, um esporte que seduziu grande parte da humanidade e se transformou numa grande indústria, movimentando bilhões de dólares, transformando num passe de mágica, jovens simples em celebridades milionárias, está perdendo os seus encantos originais, mesmo com todo o empenho da mídia em resgatar o orgulho nacional enferrujado. Os jogadores não são mais os nossos vizinhos, os nossos compatriotas; são agora cidadãos do mundo globalizado, distanciados da realidade dos seus países de origem.
Mas enfim a copa de 2010. Não senti as mesmas emoções do passado. Não tinha ídolos. Os grandes craques não estavam presentes. Ronaldinho Gaúcho, mesmo numa fase não muito boa, poderia desequilibrar o futebol mecânico das seleções européias. As promessas jovens como Neymar e Ganso, ficaram fora sob a alegação de que não tinham muita experiência. Faltou a coragem do Feola, que em 1958 colocou um menino de dezessete anos para jogar. Ele encantou o mundo.
Um amigo músico da Banda Sinfônica de São Paulo nos convidou para assistir a apresentação da banda sob a batuta de um competente maestro espanhol e depois assistir o jogo em sua casa. Era o jogo do Brasil e Costa do Marfim. De todos os presentes, somente um chegou a vibrar com os gols. Os demais fizeram gestos mecânicos sem grandes emoções. Enquanto os fogos e as vuvuzelas faziam alarde do lado de fora, tomamos um gostoso café com bolo, falando de coisas do espírito, de saúde e trivialidades. E o futebol? Ora o futebol!
Renato Ladeia
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