Butiá na verdade não existe mais. È apenas uma fotografia desbotada e um quadro singelamente pintado, mas deixou saudades e muitas. Ficava em Descalvado, interior de São Paulo, para onde a nossa turma ia passar alguns fins de semana prolongados nos longínquos anos 1970. Era uma pequena vila e tinha até uma estação de trem, herança dos gloriosos tempos em que o café era o ouro verde do estado. Também não faltava a igrejinha, aconchegante onde os fieis depositavam as suas esperanças no futuro das almas. O sino da igreja, contava o famoso Zé Dozzi, num dia de forte temporal, caiu do campanário e trincou. Ele como zeloso fiel tratou logo de consertá-lo. E afirmava, sem medo de ser chamado de faroleiro, que soldou o sino com ouro puro doado pelos moradores, que abriram mão de anéis, alianças e correntinhas. Por isso quando o sino tocava, o som se espalhava no ar com certo brilho que somente uma imaginação fértil pode perceber. E o menino Jesus em retribuição à generosidade do povo de Butiá, deu-lhes muitas e fartas colheitas. O café? Ora, era o melhor café de todo o estado. Dizem até que era famoso o café de Butiá, pelo seu sabor, aroma que lembrava amêndoas maduras torradas, além de um leve toque achocolatado. Está aí uma marca de prestígio que pode ser utilizada por algum empreendedor: “Café Butiá, igual não há”
Não pensem os leitores que era só isso que havia em Butiá. Tinha muito, muito mais. Uma velha e desativada usina de energia elétrica, que formava uma queda d’água exuberante, que permitia saborosas duchas durante o verão, onde alguns despudorados amigos se banhavam nus para o horror dos poucos e pudicos habitantes. Um laranjal, na primavera, espalhava o seu doce perfume pelas redondezas, principalmente ao cair das velhas e saudosas tardes de Butiá. O antigo empório Santa Teresinha, era onde nos hospedávamos. Era uma velha construção dos anos quarenta, com as portas rangendo, sem forro e habitada por morcegos que ficavam irritados com os intrusos. Sua proprietária, tia do Sinézio Dozzi Tezza, emprestava o imóvel, prazerosamente, para o sobrinho, acreditando que sua turma ia para lá fazer um retiro espiritual. O sobrinho deixava-a enlevada ao informá-la que loas ao senhor e cânticos gregorianos eram entoados no local. Cânticos gregorianos com certeza não, mas muitos sambas, canções e modas caipiras rolavam até altas madrugadas, regados com boa cachaça e muita cerveja.
Mas as noites de Butiá, muitas vezes eram lúgubres, pois um dos companheiros, o Edélcio Thenório, excelente contador de causos, pesquisava durante o dia, velhas histórias de assombração do lugar. E na calada da noite, caprichava no enredo e todos dormiam com um olho só. O outro era para espantar almas penadas. Descobriu ele que muitos velórios eram realizados no empório por falta de um lugar apropriado nas redondezas. A venda de cachaça e cafezinho ajudava o dono do armazém a aumentar a sua receita quando a dita cuja levava alguém para o destino final. Houve até o causo de um defunto que se levantou no meio da noite pedindo uma cachacinha. O povo saiu em disparada pelas invernadas enquanto o defunto lamentava que só queria molhar a goela para enfrentar o juízo final. Histórias...
A estação de trem dava um charme todo especial a Butiá e lembrava aquelas estações que apareciam nos filmes de faroeste. A arquitetura inglesa, padrão das estações paulistas, contrastava com as simplórias casas caiadas e a vegetação que tomava conta dos arredores. À época, o trem que vinha de Descalvado ainda passava por lá, pelo menos uma vez por dia, quando aproveitávamos para fazer inesquecíveis passeios.
Mas como disse no início dessa crônica, Butiá não existe mais. O empório foi demolido e virou pastagem. A estação de trem foi também demolida, pois sem cafezais já havia perdido sua finalidade há tempos. Só restou mesmo a igrejinha, que a religiosidade do povo vai conservar ainda por muito tempo. Quanto ao sino, motivado pelas histórias do Zé Dozzi, já foi roubado várias vezes e depois devolvido, pois se descobria que a solda era ouro dos tolos. Enquanto isso, o velho Dozzi, pitando seu cigarro de palha, ri dessas histórias e afirma que ninguém vai conseguir achar onde está o remendo e nem o ouro, pois o sino é encantado.
Renato Ladeia
Voltei no tempo...Parabéns mais uma vêz!!!
ResponderExcluirKalunga.
Como é bom recordar. Também nasci no interior de São Paulo e trago comigo essas lembranças também...Isso é vida, raiz, saudade.... mary Zanin, amiga da Mimi
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