O último dia 14 de março foi o dia da poesia e eu nem me lembrava da data. Mas confesso que não acho que a poesia precise de data; não porque a poesia não mereça, mas porque ela está acima das datas e não é necessário um dia para se ler poesia. Todos os dias são da poesia, pena que nem todos pensem assim. Um velho amigo sempre diz: “Esse mundo não tem mais poesia” e isso era o bastante para desmanchar o coração da mais renitente donzela. “As mulheres podem gostar de cartões de crédito, belos carros, roupas, jóias, mas são os poetas que tocam em suas almas”, repetia esse dom Juan incurável.
Existiria poesia sem poetas? Eu acho que sim, pois a poesia está em todos os lugares e em todas as pessoas. Mas é preciso o olhar do poeta para decifrá-las, lapidá-las. É claro que existem os poemas brutos e os mais elaborados, mas são todos poesias. Há também aquela velha discussão de que letra de música não é poesia. Discussão estéril... Chico Buarque é um dos defensores desta tese, que considero apenas modéstia do autor de Beatriz, uma das mais belas páginas poéticas da música popular brasileira. Se ele não fosse músico e cantor, seria com certeza, apenas um poeta, que não teria a visibilidade dos que não podem andar nas ruas como homens comuns.
Esse assunto do Chico me fez lembrar-se de outro poeta, o Federico Garcia Lorca, que além de um grande poeta e dramaturgo era um artista com múltiplas facetas. Era também músico e desenhista de talento. Há alguns anos, fuçando uma liquidação de discos, encontrei um long-playing de capa preta, com um belo desenho estilizado de um homem deitado sobre a mesa de um bar ao lado de sua guitarra. Era de músicas de Garcia Lorca, interpretadas por Paco de Lucia. Comprei logo o disco antes que aparecesse outro interessado e ao ouvir o som do grande guitarrista, fui transportado para a terra do artista espanhol: Andaluzia. No desenho, o guitarrista boêmio, extenuado após tocar sua guitarra durante toda a noite, abandonava seu corpo sobre a mesa no final da madrugada.
Era um belo disco que ingenuamente emprestei para algum violonista, amigo ou conhecido, que nunca mais devolveu. Mas conservo na memória este disco e a lembrança de um poeta que também tocava guitarra, compunha canções e escrevia peças de teatro. Um artista completo que foi cruelmente assassinado pelos fascistas durante a revolução espanhola, ainda jovem e no auge da carreira.
Meu primeiro contato com a obra do poeta foi em uma peça de teatro do Flávio Rangel e Millor Fernandes, “Liberdade, liberdade!” Era uma coletânea de textos de vários autores sobre a liberdade. Paulo Autran declamava um trecho do poema Romance Sonâmbulo, os conhecidos versos: “Verde que te quiero verde/ Verde viento, verde rama/ El barco sobre la mar/ E el caballo na Montana...”. O vigor da interpretação de Autran dava um sentido transcendente para o poema e inspirava o sentido de liberdade.
Mais recentemente li dois livros em que os autores escreveram sobre Garcia Lorca. O primeiro, do Pablo Neruda, em sua autobiografia “Confesso que vivi”. Nele conta seus primeiros contatos com o escritor, ainda muito jovem em Madrid e Paris. Neruda dizia que Lorca se recusava a ler os seus versos, pois gostava tanto deles que tinha medo de ser influenciado. O outro, Luiz Buñel, cineasta espanhol, que dirigiu a inesquecível “Bela da Tarde” entre outras obras primas. No livro conta os últimos momentos que esteve com o poeta de Andaluzia e tentou sem sucesso convencê-lo a ficar em Madrid em razão da radicalização dos conflitos entre republicanos e fascistas em sua amada Andaluzia. Lá ele se refugiou na casa de um fascista, amigo de sua família, pois achava que estaria mais seguro. Ledo engano. De lá foi retirado em um caminhão com outros republicanos e vilmente assassinado. Buñuel se lembrava de como o poeta tinha medo de morrer e a lembrança da tortura pela qual passou em seus últimos momentos o comovia anos depois.
Confesso, que me perdoem os amantes da literatura, como Milton Eto, que até o ginásio passava longe da poesia. Era para mim uma tortura ler os barrocos, românticos e parnasianos. Só depois, ao ler o Drummond, com seus versos soltos e livres, comecei a me aproximar da poesia. Depois dele, veio o Fernando Pessoa e os seus heterônimos: Álvaro de Campos, Alberto Caieiro e o próprio; Manuel Bandeira, Mário de Andrade e alguns portugueses modernos, como José Régio, li depois. Ainda no colégio fiquei fascinado no T.S.Elliot e os Quatro Quartetos, um livro inesquecível.
E quem nunca escreveu seus versos? Lembro-me da Neusa, minha irmã mais velha, que escrevia versinhos em seus cadernos escolares e muitos deles consegui ler às escondidas. Ainda outro dia perguntei a ela se não escrevia mais. “Não há mais tempo para poesia. A vida real é muito dura”, disse. Meu irmão Nelson, recentemente falecido rascunhava também seus versos e os mostrava a mim com certo constrangimento. Afinal escrever poesia não é visto como algo digno numa sociedade voltada para o sucesso profissional, para a racionalidade.
Há que lembrar nestas rememorações sobre poesia e poetas, do José Carlos Brandão, poeta consagrado, autor de vários livros e de quem recebo belos e inspirados poemas quase toda semana. Brandão eu conheço virtualmente, por obra e graça da amiga comum, Mirian Sofiati, mulher do meu amigo e parceiro, Oscar de Vito. Os velhos amigos, como Dedo Thenório e Zeca da Silva, que escrevem versos unicamente para as canções que compõem ou para parcerias, mas que merecem estar no panteão da poesia. Dedo, além de escrever versos e peças de teatro, é músico, desenha com maestria, com um traço muito pessoal e belo. Está aí um Garcia Lorca "caboclo" que poderia ter acontecido.
São muitos os amigos poetas e amantes da poesia, mas é impossível deixar de citar o velho Delcy Thenório, poeta paulista de Ibiúna, que apenas recentemente teve seu primeiro livro publicado. Ao contrário de Bandeira que escrevia versos como quem morre, Delcy escreve versos com quem ri e se diverte das contradições da vida.
Outro poeta nunca publicado e que já teve alguns dos seus poemas musicados pelo extraordinário músico Carlinhos Kalunga, é de Butiá, uma pequena vila de Descalvado. Seu nome, Sinésio Dozzi Tezza, que extrai da terra, das árvores e dos bichos, os seus melhores versos. Ele faz versos como quem lavra e desbrava a sua terra natal.
Recentemente tive contato com um velho amigo, o Laércio Solano, o Durango, que há tempos abandonou a metrópole para viver um grande amor no grande sertão da Bahia e que nos últimos tempos desandou a escrever versos, inspirados, talvez, em seus antepassados de Andaluzia, na Espanha.
Enfim, não poderia deixar de citar o poeta, arquiteto e artista plástico Tomás Padovani com sua poesia extremamente sintética, que lapida as palavras num processo intenso, sem excessos, quase minimalista. Colega dos tempos de colégio, compartilhamos momentos de efervescência cultural, o medo dos ditadores e muita esperança.
Os mestres do colégio, como a professora de literatura, Hamide Assain José, grande figura, cujas análises de textos poéticos ainda povoam meu imaginário e a quem devo muito de minha formação. O Esdras Pinto da Silva, professor de inglês, que me incentivou a escrever meus versos tortos e a ler alguns ingleses e americanos.
E assim termino essa crônica que começou pelo dia da Poesia, relembrou o imortal Garcia Lorca e terminou com as minhas amizades poéticas que valem e valerão sempre à pena, enquanto houver luz e poesia em minhas retinas fatigadas.
Renato Ladeia,15 de março de 2010
Outro poeta nunca publicado e que já teve alguns dos seus poemas musicados pelo extraordinário músico Carlinhos Kalunga, é de Butiá, uma pequena vila de Descalvado. Seu nome, Sinésio Dozzi Tezza, que extrai da terra, das árvores e dos bichos, os seus melhores versos. Ele faz versos como quem lavra e desbrava a sua terra natal.
Recentemente tive contato com um velho amigo, o Laércio Solano, o Durango, que há tempos abandonou a metrópole para viver um grande amor no grande sertão da Bahia e que nos últimos tempos desandou a escrever versos, inspirados, talvez, em seus antepassados de Andaluzia, na Espanha.
Enfim, não poderia deixar de citar o poeta, arquiteto e artista plástico Tomás Padovani com sua poesia extremamente sintética, que lapida as palavras num processo intenso, sem excessos, quase minimalista. Colega dos tempos de colégio, compartilhamos momentos de efervescência cultural, o medo dos ditadores e muita esperança.
Os mestres do colégio, como a professora de literatura, Hamide Assain José, grande figura, cujas análises de textos poéticos ainda povoam meu imaginário e a quem devo muito de minha formação. O Esdras Pinto da Silva, professor de inglês, que me incentivou a escrever meus versos tortos e a ler alguns ingleses e americanos.
E assim termino essa crônica que começou pelo dia da Poesia, relembrou o imortal Garcia Lorca e terminou com as minhas amizades poéticas que valem e valerão sempre à pena, enquanto houver luz e poesia em minhas retinas fatigadas.
Renato Ladeia,15 de março de 2010
Parabéns, Renato. E parabéns à poesia, que não precisa - somos nós que precisamos, para nos lembrarmos dela.
ResponderExcluirNão posso ouvir falar de García lOrca sem me lembrar destas suas palavras sobre a poesia: "se é verdade que sou poeta pela graça de Deus - ou do demônio - também o é que o sou pela graça da técnica e do esforço, e por dar-me conta em absoluto do que é um poema." O poeta diz tudo que é preciso para fazer poesia: técnica, esforço e consciência do que é um poema.
Abraços.
E, sem querer... Mas, querendo palpitar aqui...
ResponderExcluirQue delícia ver que são amigos, os meus amigos!
Dio!!!! Grazie!!!!
Ecco!
Beijos aos dois!