Era uma vez
Um Czar naturalista
Que caçava homens
Quando lhe disseram que se caçavam
Borboletas e passarinhos
Achou uma barbaridade (Drummond)
José Pereira era um hábil caçador e nos tempos em que no oeste paulista ainda havia matas virgens, ele se embrenhava por elas para caçar. Não usava armas de fogo, apenas um longo punhal, muito afiado. Era filho de escravos africanos e talvez tenha aprendido com seu pai a arte dos seus antepassados que assim caçavam leões nas savanas africanas. Todos que o conheciam adoravam sua elegância, simplicidade e simpatia. Tinha sempre em mãos balas e guloseimas para presentear as crianças. Sua casa, que ficava perto da estrada, era repleta de flores e um pequeno pomar, onde a molecada se deliciava nas épocas em que as frutas entravam em tempo de madureza. Ele não se incomodava e tinha prazer e ver sua casa repleta de crianças. Como era um caçador suas paredes ostentavam peles de animais esticadas. Quando criança, nunca cheguei a pensar naquilo como uma crueldade, mas apenas uma coleção de troféus. Ele explicava sempre orgulhoso e com todos os detalhes como havia caçado cada um dos animais, relatos dos quais vou poupar meus nobres leitores.
Ele também era hábil com as ervas que curavam enfermidades diversas e foi essa a razão pela qual se ligou à minha família. Minha irmã mais velha teve uma febre muito forte e alguém se lembrou de que o Zé Pereira era um mestre em curar doenças. Chamado e já sabendo do caso, chegou com as suas ervas e em poucas horas a febre havia baixado e a maninha já estava brincando novamente. Foi daí que surgiu a amizade e a promessa de minha mãe que eu, que estava tranqüilo em seu ventre, seria batizado por ele, juntamente com uma prima solteira.
Fui batizado conforme prometido e pouco tempo tive para desfrutar a condição de afilhado de um grande caçador, pois tempos depois nos mudamos para a capital e apenas nas férias escolares é que o visitávamos.
Longos anos se passaram até que um dia ele apareceu em casa. Estava magro e abatido e pediu ajuda aos meus pais para se tratar de uma dor de estômago que depois se descobriu ser um câncer que o levou a morte em pouco tempo. Nesta ocasião ele trouxe-me de presente uma pele de jaguatirica que achei o máximo. Longe dos olhares dos meus pais, colocava-o nas costas e assustava a garotada do bairro. Além disso, gostava de contar orgulhoso para uma platéia pasmada, como ele havia caçado o bicho, que para mim era uma onça, com muitos detalhes inventados para dar mais emoção.
Com o tempo e já sabendo que a pobre jaguatirica era um animal em extinção no Brasil, tratei de logo de deixar a pele bem guardada em um armário, praticamente esquecida. Casei e nem me lembrei de levá-la, como também não gostaria de lembrar da velha pele até que o meu irmão Nelson se ofereceu para ficar com ela como lembrança de uma espécie destruída pela caça predatória. Não pensei duas vezes e ele levou a pele de com a promessa de não se desfazer dela. Fiquei feliz em ter me livrado de tão funesta relíquia, principalmente porque sabia que estaria em bom lugar e me isentaria da responsabilidade nada ecológica de guardar tal troféu.
Mas o velho couro já estava nas estantes do esquecimento, quando meu irmão faleceu e seu filho apareceu alguns dias depois com velho butim. “Tio, achamos esse couro de onça nas coisas do meu pai e concluímos que era melhor dá-lo a você de presente, pois não sabemos o que fazer com ele”.
Pois é, o velho couro de uma pobre jaguatirica, morta por um velho caçador nas florestas do oeste paulista nos anos cinquenta está de volta às minhas mãos. Minha mulher e minha filha acham um horror que ela fique sobre o sofá, como o couro de anta que o poeta Drummond trouxe de relíquia de Itabira. Meus amigos torcem o nariz quando vêem o troféu e alguns, mais radicais, se recusam a entrar na sala, tal a ojeriza que sentem.
De minha parte, como cúmplice inocente da crueldade, não tenho coragem de descartá-lo e tampouco dá-lo de presente (se é que existiria algum interessado). Por enquanto ele reina silencioso, sempre despertando em minhas retinas fatigadas a lembrança de que o homem é um predador terrível, que mata pelo simples prazer de ter um troféu em sua parede. Como também não terei a quem deixar a pele, vou colocar em meu testamento que o dito seja levado comigo para a terra do nunca. Assim livrarei os meus descendentes de cometerem uma indelicadeza com o velho Zé Pereira, um homem elegante e amável, que também caçava onças, antas e jaguatiricas.
Renato Ladeia, março de 2010
Um Czar naturalista
Que caçava homens
Quando lhe disseram que se caçavam
Borboletas e passarinhos
Achou uma barbaridade (Drummond)
José Pereira era um hábil caçador e nos tempos em que no oeste paulista ainda havia matas virgens, ele se embrenhava por elas para caçar. Não usava armas de fogo, apenas um longo punhal, muito afiado. Era filho de escravos africanos e talvez tenha aprendido com seu pai a arte dos seus antepassados que assim caçavam leões nas savanas africanas. Todos que o conheciam adoravam sua elegância, simplicidade e simpatia. Tinha sempre em mãos balas e guloseimas para presentear as crianças. Sua casa, que ficava perto da estrada, era repleta de flores e um pequeno pomar, onde a molecada se deliciava nas épocas em que as frutas entravam em tempo de madureza. Ele não se incomodava e tinha prazer e ver sua casa repleta de crianças. Como era um caçador suas paredes ostentavam peles de animais esticadas. Quando criança, nunca cheguei a pensar naquilo como uma crueldade, mas apenas uma coleção de troféus. Ele explicava sempre orgulhoso e com todos os detalhes como havia caçado cada um dos animais, relatos dos quais vou poupar meus nobres leitores.
Ele também era hábil com as ervas que curavam enfermidades diversas e foi essa a razão pela qual se ligou à minha família. Minha irmã mais velha teve uma febre muito forte e alguém se lembrou de que o Zé Pereira era um mestre em curar doenças. Chamado e já sabendo do caso, chegou com as suas ervas e em poucas horas a febre havia baixado e a maninha já estava brincando novamente. Foi daí que surgiu a amizade e a promessa de minha mãe que eu, que estava tranqüilo em seu ventre, seria batizado por ele, juntamente com uma prima solteira.
Fui batizado conforme prometido e pouco tempo tive para desfrutar a condição de afilhado de um grande caçador, pois tempos depois nos mudamos para a capital e apenas nas férias escolares é que o visitávamos.
Longos anos se passaram até que um dia ele apareceu em casa. Estava magro e abatido e pediu ajuda aos meus pais para se tratar de uma dor de estômago que depois se descobriu ser um câncer que o levou a morte em pouco tempo. Nesta ocasião ele trouxe-me de presente uma pele de jaguatirica que achei o máximo. Longe dos olhares dos meus pais, colocava-o nas costas e assustava a garotada do bairro. Além disso, gostava de contar orgulhoso para uma platéia pasmada, como ele havia caçado o bicho, que para mim era uma onça, com muitos detalhes inventados para dar mais emoção.
Com o tempo e já sabendo que a pobre jaguatirica era um animal em extinção no Brasil, tratei de logo de deixar a pele bem guardada em um armário, praticamente esquecida. Casei e nem me lembrei de levá-la, como também não gostaria de lembrar da velha pele até que o meu irmão Nelson se ofereceu para ficar com ela como lembrança de uma espécie destruída pela caça predatória. Não pensei duas vezes e ele levou a pele de com a promessa de não se desfazer dela. Fiquei feliz em ter me livrado de tão funesta relíquia, principalmente porque sabia que estaria em bom lugar e me isentaria da responsabilidade nada ecológica de guardar tal troféu.
Mas o velho couro já estava nas estantes do esquecimento, quando meu irmão faleceu e seu filho apareceu alguns dias depois com velho butim. “Tio, achamos esse couro de onça nas coisas do meu pai e concluímos que era melhor dá-lo a você de presente, pois não sabemos o que fazer com ele”.
Pois é, o velho couro de uma pobre jaguatirica, morta por um velho caçador nas florestas do oeste paulista nos anos cinquenta está de volta às minhas mãos. Minha mulher e minha filha acham um horror que ela fique sobre o sofá, como o couro de anta que o poeta Drummond trouxe de relíquia de Itabira. Meus amigos torcem o nariz quando vêem o troféu e alguns, mais radicais, se recusam a entrar na sala, tal a ojeriza que sentem.
De minha parte, como cúmplice inocente da crueldade, não tenho coragem de descartá-lo e tampouco dá-lo de presente (se é que existiria algum interessado). Por enquanto ele reina silencioso, sempre despertando em minhas retinas fatigadas a lembrança de que o homem é um predador terrível, que mata pelo simples prazer de ter um troféu em sua parede. Como também não terei a quem deixar a pele, vou colocar em meu testamento que o dito seja levado comigo para a terra do nunca. Assim livrarei os meus descendentes de cometerem uma indelicadeza com o velho Zé Pereira, um homem elegante e amável, que também caçava onças, antas e jaguatiricas.
Renato Ladeia, março de 2010
Bela crônica, Renato. Bela crônica.
ResponderExcluirAgora... Imagine a seguinte situação. Daqui a centenas ou milhares de anos quando os "escafandristas", os antropólogos ou coisa que o valha se depararem com os seus restos mortais, afirmarão:
Esse cara era macho hein... A onça o matou, mas ele também matou a onça...
Grande abraço,
Zéca da Silva
Lindo texto.
ResponderExcluirUma vez meninos vizinhos meus caçaram em uma grande arapuca um baita felino. Era um gato maracajá. Uma, digamos, jaguatiricazinha. Levamos o bichinho para o zoológico de Sorocaba de moto. Como sabia que casais de felinos andam juntos, avisei a moçada que a fêmea apareceria. E apareceu. Eu estava na casa do meu pai e eles mataram o bichinho. Consideravam-no uma imundície que lhes destruia as galinhas do quintal.
Abração,
Dédo