Hoje me dei conta de que a minha primeira e única visita a Belo Horizonte ainda permanece em minhas retinas fatigadas. Apenas um fim de semana, mas ainda fica a impressão de que durou uma eternidade. A viagem de ônibus foi à noite e fez um frio de doer os ossos. Não consegui pregar os olhos, tal o desconforto. Mas o dia amanheceu bonito, ensolarado e pude conhecer a primeira cidade totalmente planejada do Brasil. Naquele momento me veio à mente a voz da minha professora primária, Da. Teresa Rami, nas aulas de geografia, explicando as características das capitais brasileiras. Mas eu tinha outro motivo, mais relevante para a minha fugaz estadia em BH. Era conhecer a igreja de Pampulha, projetada pelo arquiteto Oscar Niemeyer e com pinturas do grande mestre Candido Portinari.
A viagem foi a convite de um amigo da época, Marcos Padovani, a quem não vejo há séculos. Sua irmã, Cecília, estava num convento em Pampulha e ele precisava fazer-lhe uma visita, levar-lhe notícias, enfim, coisas de família.
Ao chegarmos ao convento, fomos recebidos pelas irmãs com um almoço, que desfrutamos solitariamente, pois não era permitido às noviças, tomar refeições ao lado de leigos, mesmo parentes. Marcos, um pouco espevitado, abriu um armário e de lá sacou uma garrafa de vinho de missa, do qual saboreamos, pecadoramente, boas doses. Enquanto ele se divertia com a proeza, eu tive a impressão de que viraria churrasco nas profundezas do inferno.
Depois do almoço fomos dar um passeio de barco no lago do jardim do convento. Era uma bela paisagem. O lago era rodeado de choupos que lambiscavam, sorrateiramente, as águas. Cecília era acompanhada pela Alessandra, uma moça bela e suave, que cuidava em remar, vagarosamente, o barco. Marcos, encantado com sua beleza, a provocava, insinuando que ela tivera uma desilusão amorosa com algum Alessandro e por isso o nome. Ela se divertia com as brincadeiras do meu amigo e parecia não se importar com elas. A Cecília que eu já conhecia de vista na igreja do bairro, tinha um olhar profundo e suave, próprio das mulheres que se dedicam de corpo e alma às causas religiosas. Sua voz era serena e amiga, transmitindo paz e tranqüilidade. Uma pessoa inesquecível.
À noite fomos à cidade, pois por motivos óbvios não era possível pernoitar no convento. Vagamos pela cidade tentando comprar amores por preços módicos, pois o dinheiro que tínhamos mal dava para as despesas. Depois de bater pernas inutilmente, acabamos por dormir em um humilde hotelzinho, indicado pelas freiras. As noitadas de amor em BH que seriam cantadas em prosa e verso ficariam para outra oportunidade. Sinceramente, as mulheres mineiras me decepcionaram.
No dia seguinte, um domingo, foi bastante movimentado, com missa no convento, festas e passeios. Lá pude admirar a ousadia arquitetônica de Niemeyer que projetou uma igreja que chegou a ser fechada pela intolerância da conservadora família mineira. Ele quebrou os paradigmas barrocos sob os quais o imaginário popular mineiro concebia uma igreja. Portinari, por sua vez pintou santos rústicos, feios e mal nutridos, representando uma visão primitiva e pura do cristianismo. Isso foi demais para a família mineira, guardiã dos ideais do Brasil colonial. O sábio tempo tratou de curar as feridas deixadas pelas ousadias do arquiteto e do pintor e Pampulha está lá, orgulhosamente no panteão das glórias de Minas.
É sempre triste voltar, pois sempre vem aquele desejo de ficar mais um pouco, conhecer melhor as pessoas, os segredos mais recônditos da cidade, as suas belas mulheres. Voltei sonhando com amores impossíveis, como uma linda freira que abandonaria o hábito e fugiria comigo para uma vida mundana. Antes do amanhecer, a bela freira já teria desistido de abandonar o hábito e eu retornaria a minha vida cotidiana.
Pois é, Belo Horizonte ficou lá, entre as montanhas de Minas e muita, muita coisa aconteceu depois. Cecília Padovani faleceu e hoje é apenas o nome de uma praça em um bairro da cidade, uma homenagem ao seu trabalho voltado para a educação e atendimento à população carente. Os seus gestos suaves, o seu olhar e sua voz serena se perderam por aqueles horizontes verdes azulados, onde olhos mineiros descansam. Quanto a Alessandra, cujos belos olhos encantaram dois adolescentes, que fim terá levado? Belo Horizonte! Quem sabe um dia desses vou novamente à cidade, rever Pampulha e se a sorte estiver do meu lado, tomarei uma boa taça de vinho de missa. Para isso vou precisar da cara de pau do Marcos Padovani, que nem sei por onde anda.
Renato Ladeia
A viagem foi a convite de um amigo da época, Marcos Padovani, a quem não vejo há séculos. Sua irmã, Cecília, estava num convento em Pampulha e ele precisava fazer-lhe uma visita, levar-lhe notícias, enfim, coisas de família.
Ao chegarmos ao convento, fomos recebidos pelas irmãs com um almoço, que desfrutamos solitariamente, pois não era permitido às noviças, tomar refeições ao lado de leigos, mesmo parentes. Marcos, um pouco espevitado, abriu um armário e de lá sacou uma garrafa de vinho de missa, do qual saboreamos, pecadoramente, boas doses. Enquanto ele se divertia com a proeza, eu tive a impressão de que viraria churrasco nas profundezas do inferno.
Depois do almoço fomos dar um passeio de barco no lago do jardim do convento. Era uma bela paisagem. O lago era rodeado de choupos que lambiscavam, sorrateiramente, as águas. Cecília era acompanhada pela Alessandra, uma moça bela e suave, que cuidava em remar, vagarosamente, o barco. Marcos, encantado com sua beleza, a provocava, insinuando que ela tivera uma desilusão amorosa com algum Alessandro e por isso o nome. Ela se divertia com as brincadeiras do meu amigo e parecia não se importar com elas. A Cecília que eu já conhecia de vista na igreja do bairro, tinha um olhar profundo e suave, próprio das mulheres que se dedicam de corpo e alma às causas religiosas. Sua voz era serena e amiga, transmitindo paz e tranqüilidade. Uma pessoa inesquecível.
À noite fomos à cidade, pois por motivos óbvios não era possível pernoitar no convento. Vagamos pela cidade tentando comprar amores por preços módicos, pois o dinheiro que tínhamos mal dava para as despesas. Depois de bater pernas inutilmente, acabamos por dormir em um humilde hotelzinho, indicado pelas freiras. As noitadas de amor em BH que seriam cantadas em prosa e verso ficariam para outra oportunidade. Sinceramente, as mulheres mineiras me decepcionaram.
No dia seguinte, um domingo, foi bastante movimentado, com missa no convento, festas e passeios. Lá pude admirar a ousadia arquitetônica de Niemeyer que projetou uma igreja que chegou a ser fechada pela intolerância da conservadora família mineira. Ele quebrou os paradigmas barrocos sob os quais o imaginário popular mineiro concebia uma igreja. Portinari, por sua vez pintou santos rústicos, feios e mal nutridos, representando uma visão primitiva e pura do cristianismo. Isso foi demais para a família mineira, guardiã dos ideais do Brasil colonial. O sábio tempo tratou de curar as feridas deixadas pelas ousadias do arquiteto e do pintor e Pampulha está lá, orgulhosamente no panteão das glórias de Minas.
É sempre triste voltar, pois sempre vem aquele desejo de ficar mais um pouco, conhecer melhor as pessoas, os segredos mais recônditos da cidade, as suas belas mulheres. Voltei sonhando com amores impossíveis, como uma linda freira que abandonaria o hábito e fugiria comigo para uma vida mundana. Antes do amanhecer, a bela freira já teria desistido de abandonar o hábito e eu retornaria a minha vida cotidiana.
Pois é, Belo Horizonte ficou lá, entre as montanhas de Minas e muita, muita coisa aconteceu depois. Cecília Padovani faleceu e hoje é apenas o nome de uma praça em um bairro da cidade, uma homenagem ao seu trabalho voltado para a educação e atendimento à população carente. Os seus gestos suaves, o seu olhar e sua voz serena se perderam por aqueles horizontes verdes azulados, onde olhos mineiros descansam. Quanto a Alessandra, cujos belos olhos encantaram dois adolescentes, que fim terá levado? Belo Horizonte! Quem sabe um dia desses vou novamente à cidade, rever Pampulha e se a sorte estiver do meu lado, tomarei uma boa taça de vinho de missa. Para isso vou precisar da cara de pau do Marcos Padovani, que nem sei por onde anda.
Renato Ladeia
Fui a BH uma vez, as 13 horas de viagem de ônibus mais desconfortáveis que experimentei - e já fui de S. Manuel a Rio do Oeste, SC, num ônibus sacolejante dirigido por um motorista bêbado, mas então eu tinha 15 anos de idade. Achei BH sem graça - fiz uma só visita: fui receber o Prêmio Nacional de Literatura "Cidade de Belo Horizonte", que, de interessante, tem a minha idade, numa cerimônia (cerimônia?!) sem atrativo nenhum, ninguém participando a não se alguns dos premiados, não todos. Não fiz turismo. De interessante nem um convento conheci.
ResponderExcluirValeu mais o seu relato, mais atraente. Eu só teria um quê de decepção para desabafar.
Um aabraço.
Talvez a minha imaginação hoje faça com que veja BH com outros olhos, pois não tenho muita certeza se fiquei tão entusiasmado na época. Será que o Pessoa tem razão ao dizer que se finge tão completamente que se chega a fingir que é dor, a dor que deveras se sente? De qualquer forma foram boas lembranças, bons momentos que consegui guardar.
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