Você conhece alguma Flora? Eu conheci uma, mas não tenho boas lembranças. Ela morava no interior de São Paulo, na pequena Lavínia, minha terra natal. Era a costureira da minha prima e madrinha. Eu ainda era muito criança, mas ainda tenho uma visão clara de sua casa isolada, que ficava no final de uma estrada de terra, ao lado de um velho jequitibá. Era uma construção quadrada, pintada de amarelo e com muitas janelas. Pela minha memória, que pode ser falha, não me lembro de flores em seu quintal. Será que a Dona Flora não gostava de flores? Fui algumas vezes lá com a minha prima, para fazer algumas roupas, numa época em que passei alguns meses em sua companhia. Dona Flora era uma mulher madura e muito séria, que me espetava com o alfinete sempre que fazia a prova das roupas que costurava para mim. Foram poucas vezes, mas o suficiente para deixar uma lembrança amarga da costureira e do seu nome.
Mas hoje Flora me lembra a primavera que está chegando e esbanjando cores apesar da chuva intermitente que deixa todo mundo acabrunhado. As buganvílias ou as populares primaveras plantadas em nosso quintal estão exuberantes de tantas flores e fazem a alegria dos beija-flores, borboletas e abelhas. A amoreira aproveita esta época para dar seus frutos que atraem maritacas, bem-te-vis e sabiás que fazem a festa em nosso pequeno, mas opulento quintal. A pitangueira invejosa também já está se preparando para dar os seus frutos e concorrer pela atenção dos pássaros. Como não sou muito fã de pitangas, deixo-as de bom grado para os pássaros e me divirto com as doces amoras. E num cantinho do jardim, ao lado da jabuticabeira, temos também uns pés de framboesas que tem nos proporcionado generosas colheitas: umas dez por dia. Pode parecer pouco, mas para quem conhece os sabores da infância, sabe que basta uma derretendo na boca para evocar inesquecíveis momentos. Muito a contragosto divido-as com minha filha que ainda reclama que sou um guloso. Confesso que às vezes as devoro e digo que foram os pássaros que comeram. Dou esta desculpa sem ficar vermelho, mas com o olhar maroto de um moleque que ainda existe em minhas retinas fatigadas.
A jabuticabeira, que fica sob a sombra da amoreira, queixa-se da falta de sol, mas às vezes dá bons frutos, que os bem-te-vis devoram antes que os ávidos donos possam saboreá-los. Mas mesmo sem comê-los, nada supera o prazer de ter pássaros em casa e ouví-los cantar todas as manhãs, mesmo que sejam gulosos e egoístas. Espero, contudo, que as fartas amoras bastem para saciar o voraz apetite dos nossos bem-te-vis e consigamos saborear algumas jabuticabas, a mais brasileira das frutas.
E por falar em jabuticabeira, é impossível deixar de lembrar da que o seu Giovani, vizinho do meu amigo Zeca, tinha em seu quintal. Era um árvore majestosa que dava tantos frutos que era impossível aproveitá-los todos. Os pássaros vinham de longe para a festa anual e seu Giovani, um italiano simpático e falante, cantava loas à árvore que seu pai plantou quando ainda era criança. Infelizmente, com a sua partida, a especulação imobiliária viu no terreno uma ótima oportunidade para construir mais um prédio e a velha jabuticabeira foi brutalmente arrancada da mãe-terra sem nenhuma compaixão. Que Deus a tenha e reserve as profundezas do inferno de Dante para os especuladores imobiliários. Quanto ao meu amigo Zeca, ganhou um enorme e incômodo vizinho, com mil olhos a observá-lo, como o Grande Irmão de George Orwell em “1984”.
Enquanto isso vou curtindo a minha primavera particular, aproveitando ao máximo os prazeres proporcionados aos meus olhos, guardando na memória, cada cor, cada fruto e o som do canto do sabiá laranjeira e de um pássaro estranho que apareceu por aqui e ainda não descobri o seu nome. E é por isso que a vida ainda vale à pena, o resto é apenas falta do que fazer (com ela).
Renato Ladeia
Outubro de 2009
Aquela referência, pungente, que você faz à especulação imobiliária criminosa feita com a jabuticabeira do seu João tem um contra-veneno. Feito o estrago com a planta mãe, entristeci-me, claro. Porém (há sempre um porém), a vida continuou. Um dia eu estava dando um trato no meu então quintal e notei três minúsculas filhas da velha jabuticabeira destruída. Eram sementes que, caidas para o meu lado, brotavam, pequeninas e humildes.
ResponderExcluirPensei: vou cuidar delas. E o fiz, transplantando-as para um minúsculo vasinho de violeta. Elas cresceram. Mudei para vasos maiores. Elas cresceram. Quando me mudei, uma das poucas coisas que trouxe comigo para a nova morada, foram aquelas três mudas, já crescidinhas.
Aqui na nova morada continuei cuidando delas que, lentamente, continuaram crescendo. Há seis meses, mais ou menos, o nosso amigo Zé Paulo me intimou a conhecer sua nova casa, construída na linda cidade de Santa Cruz da Conceição, interior paulista, perto de Pirassumunga. Disse a ele que ia dar-lhe um presente. Uma jabuticabeira. Levei-a e lá, naquele clima maravilhoso, a replantamos num lugar especial. A Lúcia, mulher do Zé Paulo, me informou recentemente que ela cresceu bastante e está linda.
Lembra da música do grande mestre Chico Buarque?
"Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente e inda guardo renitente
Um velho cravo para mim
Já murcharam tua fresta, pá
Mas certamente esqueceram uma semente
Nalgum canto do jardim.."
Histórias parecidas, não?
Quanto às outras duas mudas, uma eu dei de presente a um senhor muito zeloso que tem também uma casa no interior e que abriu um sorriso lha mostrei e ofereci. E a terceira, companheiro, está aqui em casa comigo, esperando por alguém que a mereça.
Questão de tempo.
Grande abraço.
Em breve brindaremos essas histórias com cerveja e vinho.
Zéca da Silva
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