Lembro-me quando meu pai contou a um primo mais velho que estava preocupado com a possibilidade de eu ter me tornado um comunista. Não que ele soubesse exatamente o seria um comunista ou comunismo. Ele tinha uma idéia muito vaga sobre isso com base nos discursos da direita conservadora. Era frequente nos meios de comunicação, os militares falarem no perigo cripto-comunista que ameaçava a família brasileira. Ele era eleitor fiel do Ademar de Barros, um famoso político do “rouba, mas faz”, mais conhecido pelas denúncias de corrupção como negociatas, desvios de dinheiro público etc. A culpa toda do medo do meu pai foi de um livro sobre a União Soviética que um colega de trabalho emprestou-me para ler. O livro na verdade não fazia apologia da União Soviética, mas uma crítica ao comunismo. Era um documentário sobre o primeiro país comunista do mundo e comentava sobre alguns progressos, mas criticava a falta de liberdade, ausência de eleições livres etc. A pessoa que me emprestou o livro não era um comunista, muito pelo contrário, ele era um liberal esclarecido. Seu nome, Rubens Novaes, o contador da empresa, e de certa forma, foi meu preceptor e chefe. Ele me ensinou os meandros da burocracia, como preencher uma nota fiscal, fazer controle de estoque, cálculos de custo, orçamentos etc. Mas ele foi além, ao me incentivar a ler romances, biografias e revistas de conhecimentos gerais. Politicamente ele oscilava entre o conservadorismo e a esquerda liberal, mas nunca assumiu uma posição política muito clara. Na fase mais crítica do governo Goulart, quando o debate sobre as Reformas de Base ganhava as ruas, ele era um ardoroso defensor da tese do desenvolvimento nacionalista autônomo. Mas quando os militares tomaram o poder, logo ele passou a defender e justificar as medidas “moralizadoras” do novo governo. Mas ele não era muito convicto, sugerindo que queria acreditar que o país havia de melhorar. De qualquer forma, devo muito ao Rubens a minha formação. Era uma pessoa bastante culta para o seu nível de escolaridade, pois lia muito. Eu estava com catorze anos quando comecei a trabalhar com ele. Durante o expediente sempre arranjava tempo para falar dos grandes escritores nacionais e estrangeiros. Lembro-me que me contou, com detalhes, Os Miseráveis de Victor Hugo, quase poupando-me de ler o volumoso romance. Pelo menos um capítulo por dia era desfiado durante o expediente, aproveitando os intervalos e a ausência do gerente.
Mas havia na empresa um comunista de verdade, com carteirinha e tudo. Era um torneiro mecânico chamado Paulo Ponciano, mineiro de Belo Horizonte. O Paulo era um mulato, culto, educado e também muito articulado, conhecedor da dialética marxista, condição que lhe dava grandes vantagens nos debates políticos durante os intervalos para o café e após o almoço. Ele tinha posições muito claras sobre o papel da classe operária na revolução e desfiava o processo revolucionário e a importância da classe operária durante os intervalos para o café e durante o horário de almoço. Mas a sua competência profissional e seriedade acabaram lhe pregando uma peça, pois acabou sendo promovido a Encarregado, situação que o deixou bastante desconfortável. Ser revolucionário e ao mesmo tempo precisar defender os interesses do capital junto aos operários como: exigir maior produtividade e disciplina, desgastaram a sua imagem.
Os operários comentavam a boca pequena: “Era comunista quando era peão, depois virou a casaca”. Depois disso, raramente se metia em discussões políticas, preferindo falar sempre em tese sobre as tendências do capitalismo. Soube, tempos depois, que pediu demissão e voltou para Minas, onde montou uma pequena indústria e se tornou um “burguês” empreendedor.
Renato Ladeia
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