Para a geração de 1968, o ano que não terminou, imaginar que um dia a estátua de Lênin seria carregada com um guindaste para ser depositada em uma caçamba de entulho, era algo simplesmente inusitado. Lembro-me de ter lido, na época, um artigo no Estadão que afirmava categoricamente que jamais haveria retrocesso na revolução russa. Ela poderia avançar, mas nunca retornar ao capitalismo consumista. O autor sinalizava que após setenta anos de revolução e várias gerações, o socialismo já estava no DNA do povo soviético. Ele ia mais longe e afirmava que a URSS estava prestes a passar por uma nova revolução, mas com outras finalidades, como por exemplo desbancar a burocracia partidária que havia se apoderado da primeira experiência socialista do planeta. Esta revolução seria mais um avanço histórico e democrático em direção à utopia comunista, uma sociedade sem classes, sem privilégios, sem fome e sem desigualdades sociais.
A Primavera de Praga, segundo o autor, que infelizmente não me recordo o nome, teria sido um passo tímido em direção às mudanças estruturais e democráticas no socialismo. Mas como ainda não havia condições históricas, ela foi violentamente reprimida pelo poderio da camarilha soviética.
Meus antigos amigos, taciturnos e revolucionários, ficaram entusiasmadíssimos com o artigo, pois muito embora torcessem por uma revolução socialista no Brasil, tinham pavor da ditadura do proletariado, que deveria vir com muita repressão aos direitos individuais. Alguns eram poetas, românticos e porque não dizer: mulherengos. A exploração da mulher como objeto sexual estaria com os dias contados após a revolução. Beber vinhos ou whisky eram hábitos pequenos burgueses que seriam varridos do mapa. Um desses meus amigos era fanático por Trotski do qual lia tudo, sendo o Profeta Armado o seu preferido. Seu sonho era passar uns dias em Paris depois da revolução para curtir as francesas que eram, na sua opinião, apaixonadas por revolucionários latinos. Era o seu sonho de consumo “pequeno burguês” e revolucionário.
Uma revolução que não suprimisse todas as liberdades e que permitisse um chopinho a beira-mar com belas garotas não faria mal a ninguém e estaria bem ao gosto do povo brasileiro que nunca seria tão radical como os russos ou chineses. Além do mais seria necessário estimular a poesia, fundamental para a saúde da alma. Alguém se lembra daquela frase dita por Stelnikoff, um bolchevista radical para o poeta Dr. Jivago: “Sua poesia é muito pessoal e a vida pessoal acabou na Rússia”? Pois é, poesia somente as revolucionárias como a do Maiakovski. Quem sabe o Ferreira Gullar seria até tolerado, mas não por muito tempo. O Poema Sujo poderia ser considerado um poema pequeno burguês decadente. Eu duvido que até o Chico Buarque, ícone da esquerda festiva brasileira, seria suportado depois dos festejos revolucionários. Músicas como Olé Olá, Carolina, Sabiá entre tantas outras seriam consideradas como resquícios de uma classe média decadente que precisaria ser extirpada de nossa sociedade.
Mas deixemos de muita conversa e voltemos ao Adeus Lênin, filme que é o objetivo desta crônica. Ele é profundamente triste do ponto de vista do personagem que busca por todos os meios preservar a memória de sua mãe que retorna a vida após meses em coma. Como dizer a alguém idealista que dedicou toda a sua vida a causa socialista que a Coca-Cola era a bebida mais consumida pela juventude da Alemanha Oriental? Que os carros do capitalismo decadente haviam destruído a indústria automobilística da República Democrática Alemã? O sonho havia acabado e ele não ousava despertar sua mãe que acordou sem saber que durante sua longa ausência pela enfermidade, uma grande revolução mudou drasticamente o mundo socialista. O neoliberalismo triunfou e acabou a História como disse Fukuyama em seu polêmico livro “O fim da História e o último homem”. O muro de Berlin desabou com a fúria popular. Um capitalismo corrupto e selvagem se instalou em toda URSS e nos países que antes eram seus satélites. Os anos de repressão violenta de nada adiantaram e o “maligno” retornou com força total. Nada restou do sonho (para alguns) de uma sociedade igualitária que era cantada em prosa e versos por sonhadores latinos.
Simbolicamente a personagem de Adeus Lênin talvez tenha sido o último suspiro da utopia que povoou o imaginário de algumas gerações. Muita gente sonhou em ser um Che Guevara aventureiro pelos campos da América do Sul, como um frei dominicano que conheci. Ele abandonou sua noiva e seu conforto para cantar as veias abertas da América Latina e salvar, para a redenção eterna, todos os pobres e infortunados latino-americanos.
Hoje, a estatua de Lênin provavelmente está disponível como peça de algum antiquário europeu, sedento para lucrar alguns dólares em seu negócio. Há também a múmia que, provavelmente, estará em algum porão de armazém corroído pelos micróbios dos quais foi religiosamente preservada durante a fase da idolatria revolucionária. Che Guevara virou um ícone da contra-cultura ou uma quase grife da moda juvenil. “Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura, jamás”, famosa frase que teria sido dita pelo Che já perdeu o seu encanto, pois ele teria sido um revolucionário mais duro e cruel do que a imagem construída de que era um homem charmoso, romântico e humanista.
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