- Alô! Quero falar com o Asdrúbal?
- Quem? Ah! Ele não mora mais aqui.
- Como não mora ...? Quem está falando?
- É o filho dele..
- O que aconteceu? Morreu?
- Não meu senhor. É que ele mudou.
O meu amigo Asdrúbal mudou de endereço e não avisou ninguém. Deixou a bela casa que construiu, tijolo por tijolo, com amor, suor e lágrimas, como diria alguém mais dramático. Lembro-me de quando mudou para o local, indo morar na edícula enquanto levantava a casa dos seus sonhos. O terreno espaçoso, onde abrigaria a área de lazer com churrasqueira e local para as rodas de samba, uma de suas grandes paixões. A amoreira ficou lá, no meio do quintal. “É para os passarinhos se regalarem, dizia orgulhoso”. Ficou também uma goiabeira que no outono carregava, sobrando para presentear amigos e parentes, além dos doces e compotas.
A casa do Asdrúbal vivia repleta de bem-te-vis, sabiás, rolinhas que passeavam livres, alem de velhos sambistas que ele ia colecionando no seu rol de amizades. Por lá passaram Catolé, Padilha, Xará, Dedo, Saulo de Tarso, Wilson e outros que a minha memória deixou envolvidos em teias de aranha. Com esses sambistas baixavam os espíritos do Noel, Vadico, Ismael Silva, Nelson Cavaquinho, Ari Barroso, Geraldo Pereira entre outros, transformando a casa do Asdrúbal num templo da boa música brasileira. Ele mesmo desfilava dezenas de sambas, resgatando coisas do arco da velha, fruto de suas pesquisas. Além disso, o nosso Asdrúbal compunha as suas marchinhas e alguns sambas memoráveis. Pena que o grande público não teve oportunidade de conhecer as canções bem construídas com letras bem humoradas e repletas de picardia. Ainda me lembro de sambas como “Dois Tijolos”, que ele fez sobre o Padilha, que há muito deixou nossa companhia.
E agora eu me pergunto: Como o velho Asdrúbal estará sem aquele espaço, rodeado de natureza e ainda impregnado do clima de antigas rodas de samba? Soube que conseguiu de um velho amigo, um cantinho numa loja de plantas e flores. Como sempre foi apaixonado pela natureza, preferiu o desconforto a ficar sem ela. Dizem que levou apenas a vitrolinha dos anos sessenta, seus discos e alguns poucos livros, entre os quais o Grande Sertão Veredas do Guimarães Rosa, que ele relê sempre que ouve a canção Mês de Maria, do Ari Barroso, cujos versos ele sempre repete “Tenho saudades do Brasil, caipira/ dos madrigais ao som da lira...”. Morar num apartamento, nem pensar. Repetia sempre o Asdrú, como carinhosamente era chamado. A vitrolinha, dizem os amigos comuns, está pelas tabelas e o chiado só aumenta. Computador, CD e outras modernidades, o velho não quer nem pensar. “Enquanto a vitrolinha funcionar eu não me separo da minha velha coleção de vinil. O chiadozinho me faz lembrar dos bons momentos, é uma ligação com o meu passado”, gostava sempre de dizer quando alguém falava sobre as inovações da tecnologia.
As lembranças do Asdrú, que pensava em passar o resto da vida na bela casa da Rua Maria das Dores, me comoveu e eu lá com meus botões fiquei a matutar sobre a tristeza de mudar sozinho, levando a roupa do corpo, deixando o espaço e todo aquele tempo vivido que foi se acumulando na memória. Por outro lado as coisas mudaram também. As rodas de samba com churrasco e cerveja já estavam rareando. Amigos mortos, outros morando longe, outros perto, mas distantes. A casa do Asdrúbal ficou apenas como uma fotografia na parede, mas com certeza, ainda dói.
Vamos deixar de tristezas porque o velho Asdru não é disso não. Com certeza ele está curtindo a sua nova vida, mesmo solitário. Seus filhos que o adoram continuam a visitá-lo para saborear os peixes que ele prepara com requintes de grand chef e ouvir os seus sábios conselhos. Uma coisa até hoje ninguém convenceu o Asdru: comer frango ou qualquer tipo de bicho penado. Aves para ele só voando no quintal ou nas florestas e campos. É capaz de passar fome, mas não coloca um grelhado de frango na boca. Dizem as más línguas que na sua adolescência até deixou de namorar a garota mais desejada do bairro somente porque diziam que ela era meio galinha. Pode?
Depois do telefonema, estou tentando encontrar o velho amigo, mas está difícil. Continua arisco como lambari em água fria. Mas prometo que quando encontrá-lo vou encomendar a ele um samba com o sugestivo título: “Ele não mora mais aqui”. Se não doer, quem sabe vamos ainda reunir a turma para cantar mais uma do velho Asdrú.
Mestre sempre mestre Ladeia. Graciosa demais essa nostálgica e humorada crônica. Como de hábito, um deleite. Uma ilha cercada da nossa azáfama. Dédo.
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