Pular para o conteúdo principal

DORIVAL CAYMMI

Meu amigo Zéca cobrou-me uma crônica sobre o velho bardo da canção praieira da Bahia. Eu cá sem nenhuma inspiração para escrever sobre uma das maiores figuras da nossa música popular brasileira. Quem não conhece Caymmi? Minha mãe, já velhinha, não sabe quem é. Pois é, mesmo assim, apesar de não se lembrar, ela ainda consegue cantarolar algumas velhas canções como Maracangalha, Marina, Peguei um Ita no norte e outras. Ainda me recordo de ouví-la cantar em casa enquanto cuidava dos afazeres domésticos. Tinha uma voz de soprano e pelo que me consta era razoavelmente afinada. E assim, eu cresci ouvindo o Caymmi, pelo rádio ou através da voz materna. Que privilégio.

Sua obra é mais conhecida do que ele mesmo. Caymmi foi um letrista inspirado que compunha com a simplicidade dos mestres, que sabia tocar forte em qualquer pessoa minimamente sensível. Quem não sente uma saudade danada ao ouvir “Peguei um Ita no Norte”, mesmo que nunca tenha morado no norte ou que tenha ido para o Rio de Janeiro? É assim mesmo, todos nós temos uma saudade atávica de algum lugar no passado. Afinal, somos todos estrangeiros, pelo menos em parte. E o próprio Caymmi, neto de um imigrante italiano, Enrico Caymmi, que aportou na Bahia no século dezenove que se misturou com o sangue africano, é também um estrangeiro nestas plagas.

Foi então, que de tanto pensar no que escrever sobre o Dorival Caymmi, numa noite destas, acabei tendo um sonho com ele. E foi um sonho bom, terno e delicado. Estávamos indo para o interior e ele era nosso convidado para passar um fim de semana na casa de um amigo. Fui encarregado de pegá-lo e levá-lo de carro até o destino. Chegando lá, tive o cuidado de ajudá-lo a sair do carro e fazê-lo sentar-se à varanda para que ele pudesse olhar a verde paisagem do interior.

- Não é como o mar da Bahia, mas é bonito, não é Caymmi? Perguntei preocupado por não tê-lo levado a uma casa de praia onde ele pudesse ver o mar.

- É bonito, é bonito... respondeu o velhinho quase entoando a canção o Mar... quando quebra na praia, é bonito...

Depois, diante dele, que estava sentado numa cadeira de balanço, fizemos um silencio respeitoso àquela figura magnânima do cancioneiro popular. Um homem que traduziu a alma do povo simples que vive na beira da praia como o João Valentão, os jangadeiros do nordeste e suas mulheres que esperam todos os dias a volta dos seus homens que se aventuram pelas águas do Atlântico, sem saber se voltarão para casa para se aconchegarem nos braços das muitas Mariazinhas. Como nos sonhos, tudo é possível, peguei um violão e o coloquei em seu colo. Ele vagarosamente começou a cantar Marina, quando fui acordado pelas maritacas e outros pássaros que invadiram a amoreira do meu quintal. É sempre bom acordar com o cantar dos pássaros, mas neste dia eles foram delicadamente intrometidos.

Mas para meu consolo, hoje, a cantora Mariane Mattoso cantou só para mim, a belíssima canção Marina. Que coisa boa! Quem ficou com inveja, basta ir ao show que ela fará no próximo dia 30, no All Of Jazz, na Rua João Cachoeira. Ela promete uma viagem fantástica pelo mundo de Caymmi, cantando as suas mais belas canções, principalmente aquelas um pouco esquecidas pelo grande público. Estará acompanhada do competente violão de Luciana Romagnolli e da percussão de Rafael Motta.

Evoé Caymmi!

Renato Ladeia

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

JOSÉ DE ARRUDA PENTEADO, UM EDUCADOR

Num dia desses  visitava um sebo para passar o tempo, quando, surpreso, vi o livro Comunicação Visual e Expressão, do professor José de Arruda Penteado. Comprei o exemplar e pus-me a recordar os tempos de faculdade em que ele era professor e nosso mentor intelectual. Era uma figura ímpar, com seu vozeirão impostado e uma fina ironia. Rapidamente estreitamos contato e nas sextas-feiras saíamos em turma para tomar vinho e conversar. Era um dos poucos professores em que era possível criticar, sem medo, a ditadura militar. Penteado era um educador, profissão que abraçara com convicção e paixão. Seu ídolo e mestre foi o grande pedagogo Anísio Teixeira, que ele enaltecia com freqüência em nossos encontros semanais. Defendia um modelo de educação voltado para uma prática socialista e democrática, coisa rara naqueles tempos. Depois disso, soube que estava coordenando o curso de mestrado em Artes Visuais da Unesp e ficamos de fazer contato com o ilustre e inesquecível mestre. Mas o t...

A ROCA DE FIAR

Sempre que visitava antiquários, gostava de ficar observando as antigas rocas de fiar e imaginando que uma delas poderia ter sido de uma das minhas bisavós e até fiquei tentado a comprar uma para deixá-la como relíquia lá em casa. Por sorte, uma amiga de longa data, a Luci, ligou um dia desses avisando que tinha um presente para nós, que ficaria muito bem em nossa casa. Para minha surpresa, era uma roca de fiar, muito antiga, que ela ganhou de presente. Seu patrão se desfez de uma fazenda e ofereceu a ela, entre outros objetos, uma roca, que ela gentilmente nos presenteou. Hoje uma centenária roca de fiar está presente em nossa casa e, além de servir como objeto de decoração, é a alegria do Tom, meu neto, que fica encantado ao girar a roda da roca. Para ele é um divertimento quando vem nos visitar e passa algumas horas em nossa companhia. Ele grita e ri de modo a ouvir-se de longe, como se a roca fosse a máquina do mundo. Recordo-me, quando criança, que minha mãe contava história...

BARRA DE SÃO JOÃO

Casa  onde Pancetti morou Em Barra de São João acontece de tudo e não acontece nada. As praias são de tombo e as ondas quebram violentamente na praia. Quase ninguém as freqüenta a não ser algum turista desavisado, preferencialmente os paulistas. Mas o lugarejo é tranqüilo, com ruazinhas arborizadas com velhas jaqueiras e com muitas primaveras nos jardins, dando uma sensação gostosa de paz e tranqüilidade há muito perdidas nas grandes metrópoles. Foi lá que nasceu o poeta Casimiro de Abreu e onde foi sepultado conforme seu último desejo. O seu túmulo está no cemitério da igreja, mas dizem que o corpo não está lá e que foi “roubado” na calada de uma das antigas noites do século dezenove. A casa do poeta, restaurada, fica às margens do Rio São João é hoje um museu onde um crânio humano está exposto e alguns afirmam que é do poeta dos “Meus Oito Anos”. Olhei severamente para o crânio e questionei como Shakespeare em Hamlet: “To be or not to be”, mas fiquei sem resposta. O cas...