Depois de vinte e três anos fomos rever um amigo. Lá estava ele com os bigodes grisalhos, os olhos ainda mais miúdos e o sorriso simpático. O abraço ainda era forte e sincero, sugerindo que sentia prazer em rever-nos. Mal sabíamos por onde começar. Falar de trabalho, de lembranças antigas, da cidade, do barulho, da crise econômica, do medo do futuro? Mas as pessoas que não tiveram uma relação formal ou apenas superficial, mas profunda, acabam desatando os nós do tempo e articulando novas conversas e por fim conseguem se reencontrar como se o tempo não tivesse passado, que foi apenas um breve intervalo entre acontecimentos.
A casa muito aconchegante, com quadros de barcos espalhados pelas paredes, sugerindo que estava ocupada por um velho marinheiro que abandonara suas lidas com o mar e se recolhera ao aconchego de antigas lembranças. Confesso que fiquei surpreso com o interesse do amigo por barcos, mar, marinheiros, pois tinha em mente que o Oscar era pouco ligado ao mar e preferia o isolamento do campo, as invernadas, as matas e cachoeiras. Ledo engano! Acabei descobrindo um lado desconhecido do amigo e seus laços atávicos com o mar. A mãe nascera olhando para o mar, em Santos, e o avô, um alemão, era apaixonado por barcos e pescas.
O pai nascera na capital, precisamente na avenida São João, centro nervoso da velha São Paulo, onde deve ter convivido com a paisagem boêmia e visto muitas cenas de sangue nos bares da redondeza, por negócios do amor. Afinal, o amor é o ridículo da vida como diz a velha canção popular. Seu pai se casou e foi para o subúrbio, Santo André, e lá viveu isolado do mundo em que nascera e crescera, sem boêmios, sem serestas e sem violão. O Oscar foi crescendo ouvindo as velhas canções de Chico Alves, o inesquecível seresteiro morto prematuramente num acidente. Os discos, colecionados pelo pai, foi sua melhor herança e ele ainda os guarda como um tesouro precioso que de fato são. A semente foi plantada no solo mais fértil e fez emergir um jovem que passou sua juventude resgatando a memória do pai, ajudando a construir um mundo boêmio numa cidade árida, onde as pessoas estavam voltadas para o trabalho nas fábricas e dispunham de pouco tempo para a música e o lazer.
O primeiro violão foi um presente da mãe, a doce Iracema, com seus eternos olhos azuis. Com ele aprendeu a criar belas canções e envolveu-se com a noite, o teatro, a boemia e até com o movimento estudantil. Os sambas-canções e as serestas do Chico Alves se encontraram com o Elvis Presley, Neel Sedaka, Paul Anka e depois com os Beatles e conviveram, harmonicamente, na sua memória. Cada um teve o seu espaço, sem xenofobia, sem ressentimentos. Contou-nos também, emocionado, o momento em que mostrou sua primeira canção para o pai, que fez sinal de aprovação com a credencial de um velho boêmio. O resgate do avô, um pescador, do pai, que cresceu em meio à boemia da Avenida São João, me fez lembrar do mito do herói na mitologia grega. É a aventura da eterna busca do pai, quando Atena ordenou a Telêmaco, filho de Ulisses: “Vá procurar o seu pai”. “Essa busca do pai é uma aventura heróica superior... é a aventura de procurar o seu próprio horizonte, a sua própria natureza, a sua própria fonte”, como disse Campbell.
A Miriam, sua mulher e também nossa amiga, sempre simpática e alegre, convidou-nos para um café e aí descobrimos, para nossa surpresa, mais uma faceta desconhecida do Oscar: um mestre-cuca diletante. Serviu-nos um delicioso bolo de maçã que havia preparado para a ocasião. À mesa tivemos ainda a companhia da filha Anna Clara, com seu sorriso doce e encantador que escondia uma inteligência brilhante e maturidade pouco comum para uma jovem de dezessete anos. Ela já construiu seu sonho e parece que lutará por ele. Pretende trabalhar em organismos internacionais para ajudar a humanidade em busca da paz como fazia o inesquecível Sergio Vieira de Mello. Como é bom descobrir jovens que estão em busca de sua utopia, não preocupados com o consumismo, com o carreirismo. Isso me faz voltar à juventude estudantil em que nós lutávamos por uma sociedade mais justa e democrática, enfrentando os canhões da ditadura militar.
A conversa continuou, sempre instigada pela Celinha, e o “velho” Oscar foi desfiando o tecido de antigas memórias, relembrando a participação numa peça da Cacilda Becker, compondo a trilha musical. Da Cacilda Becker ainda se lembrou do beijo que ganhou em agradecimento pelo seu trabalho e a xícara de café que levou como souvenir. Falou-nos do Bar do Zé Colméia que ficava em frente ao Teatro de Alumínio onde o grupo de reunia para tocar, cantar e declamar poemas. Lembrou-se do Geraldo Poeta, parceiro saudoso que ficou desgostoso com uma brincadeira e nunca mais apareceu no botequim. Recordou-se saudoso do Samambaia, reduto da boemia emergente de Santo André, onde conheceu antigos companheiros como Sinésio Dozzi Tezza, Erasmão, Sissi, Carlinhos Kalunga,Magoo, Dedo Thenório e tantos outros. Hoje o Samambaia é apenas um estacionamento que ocupou o lugar onde fervilhavam emoções, mas como dói.
Faltava apenas um detalhe importante para fecharmos com chave de ouro o encontro tão aguardado: o velho violão Di Giorgio que ganhou em um festival de música estudantil. Ao tomá-lo nas mãos lembrou-se do Jorge, outro dos antigos amigos, que conhecera pessoalmente o velho italiano fabricante de violões, o vecchio signore Di Giorgio. Falou do Zeca e sua vontade de sentar com ele e ouvir suas memoráveis marchinhas. Quando chegou o momento propício, a Celinha cutucou leão... e vieram as canções inesquecíveis que muitos de nós aprendemos a amar com ele, como Ronda, As velas do Mucuripe, As Cordas de Aço, Mês de Maria entre outras. Não faltaram as parcerias com o Sinésio, Dedo, Carlinhos entre outras. Cantou a canção Butiá, que fizemos juntos numa noite de lua cheia perto da fazenda onde o Sinésio nasceu. A emoção tomou conta da sala e viajamos para os velhos tempos em que nos encontrávamos, quase que semanalmente, com muita conversa e sobretudo, muita música e poesia.
Entramos pela madrugada adentro e quase nos recostamos no confortável sofá para esperar os primeiros raios de luz entrando pela janela como nas inesquecíveis noitadas de juventude. Mas preferimos pegar o caminho de casa, pois os tempos são outros e sabemos que não é possível resgatar de uma vez tudo o que se passou. Devagar com o andor...
A casa muito aconchegante, com quadros de barcos espalhados pelas paredes, sugerindo que estava ocupada por um velho marinheiro que abandonara suas lidas com o mar e se recolhera ao aconchego de antigas lembranças. Confesso que fiquei surpreso com o interesse do amigo por barcos, mar, marinheiros, pois tinha em mente que o Oscar era pouco ligado ao mar e preferia o isolamento do campo, as invernadas, as matas e cachoeiras. Ledo engano! Acabei descobrindo um lado desconhecido do amigo e seus laços atávicos com o mar. A mãe nascera olhando para o mar, em Santos, e o avô, um alemão, era apaixonado por barcos e pescas.
O pai nascera na capital, precisamente na avenida São João, centro nervoso da velha São Paulo, onde deve ter convivido com a paisagem boêmia e visto muitas cenas de sangue nos bares da redondeza, por negócios do amor. Afinal, o amor é o ridículo da vida como diz a velha canção popular. Seu pai se casou e foi para o subúrbio, Santo André, e lá viveu isolado do mundo em que nascera e crescera, sem boêmios, sem serestas e sem violão. O Oscar foi crescendo ouvindo as velhas canções de Chico Alves, o inesquecível seresteiro morto prematuramente num acidente. Os discos, colecionados pelo pai, foi sua melhor herança e ele ainda os guarda como um tesouro precioso que de fato são. A semente foi plantada no solo mais fértil e fez emergir um jovem que passou sua juventude resgatando a memória do pai, ajudando a construir um mundo boêmio numa cidade árida, onde as pessoas estavam voltadas para o trabalho nas fábricas e dispunham de pouco tempo para a música e o lazer.
O primeiro violão foi um presente da mãe, a doce Iracema, com seus eternos olhos azuis. Com ele aprendeu a criar belas canções e envolveu-se com a noite, o teatro, a boemia e até com o movimento estudantil. Os sambas-canções e as serestas do Chico Alves se encontraram com o Elvis Presley, Neel Sedaka, Paul Anka e depois com os Beatles e conviveram, harmonicamente, na sua memória. Cada um teve o seu espaço, sem xenofobia, sem ressentimentos. Contou-nos também, emocionado, o momento em que mostrou sua primeira canção para o pai, que fez sinal de aprovação com a credencial de um velho boêmio. O resgate do avô, um pescador, do pai, que cresceu em meio à boemia da Avenida São João, me fez lembrar do mito do herói na mitologia grega. É a aventura da eterna busca do pai, quando Atena ordenou a Telêmaco, filho de Ulisses: “Vá procurar o seu pai”. “Essa busca do pai é uma aventura heróica superior... é a aventura de procurar o seu próprio horizonte, a sua própria natureza, a sua própria fonte”, como disse Campbell.
A Miriam, sua mulher e também nossa amiga, sempre simpática e alegre, convidou-nos para um café e aí descobrimos, para nossa surpresa, mais uma faceta desconhecida do Oscar: um mestre-cuca diletante. Serviu-nos um delicioso bolo de maçã que havia preparado para a ocasião. À mesa tivemos ainda a companhia da filha Anna Clara, com seu sorriso doce e encantador que escondia uma inteligência brilhante e maturidade pouco comum para uma jovem de dezessete anos. Ela já construiu seu sonho e parece que lutará por ele. Pretende trabalhar em organismos internacionais para ajudar a humanidade em busca da paz como fazia o inesquecível Sergio Vieira de Mello. Como é bom descobrir jovens que estão em busca de sua utopia, não preocupados com o consumismo, com o carreirismo. Isso me faz voltar à juventude estudantil em que nós lutávamos por uma sociedade mais justa e democrática, enfrentando os canhões da ditadura militar.
A conversa continuou, sempre instigada pela Celinha, e o “velho” Oscar foi desfiando o tecido de antigas memórias, relembrando a participação numa peça da Cacilda Becker, compondo a trilha musical. Da Cacilda Becker ainda se lembrou do beijo que ganhou em agradecimento pelo seu trabalho e a xícara de café que levou como souvenir. Falou-nos do Bar do Zé Colméia que ficava em frente ao Teatro de Alumínio onde o grupo de reunia para tocar, cantar e declamar poemas. Lembrou-se do Geraldo Poeta, parceiro saudoso que ficou desgostoso com uma brincadeira e nunca mais apareceu no botequim. Recordou-se saudoso do Samambaia, reduto da boemia emergente de Santo André, onde conheceu antigos companheiros como Sinésio Dozzi Tezza, Erasmão, Sissi, Carlinhos Kalunga,Magoo, Dedo Thenório e tantos outros. Hoje o Samambaia é apenas um estacionamento que ocupou o lugar onde fervilhavam emoções, mas como dói.
Faltava apenas um detalhe importante para fecharmos com chave de ouro o encontro tão aguardado: o velho violão Di Giorgio que ganhou em um festival de música estudantil. Ao tomá-lo nas mãos lembrou-se do Jorge, outro dos antigos amigos, que conhecera pessoalmente o velho italiano fabricante de violões, o vecchio signore Di Giorgio. Falou do Zeca e sua vontade de sentar com ele e ouvir suas memoráveis marchinhas. Quando chegou o momento propício, a Celinha cutucou leão... e vieram as canções inesquecíveis que muitos de nós aprendemos a amar com ele, como Ronda, As velas do Mucuripe, As Cordas de Aço, Mês de Maria entre outras. Não faltaram as parcerias com o Sinésio, Dedo, Carlinhos entre outras. Cantou a canção Butiá, que fizemos juntos numa noite de lua cheia perto da fazenda onde o Sinésio nasceu. A emoção tomou conta da sala e viajamos para os velhos tempos em que nos encontrávamos, quase que semanalmente, com muita conversa e sobretudo, muita música e poesia.
Entramos pela madrugada adentro e quase nos recostamos no confortável sofá para esperar os primeiros raios de luz entrando pela janela como nas inesquecíveis noitadas de juventude. Mas preferimos pegar o caminho de casa, pois os tempos são outros e sabemos que não é possível resgatar de uma vez tudo o que se passou. Devagar com o andor...
Parabéns, Renato, pelo belo retrato do Oscar. Um grande cara. Com um sorriso amigo, uma amabilidade, temperada com a memória, com a música. Fiquei me imaginando aí com vocês. Melhor ficar só na imaginação: já começo a sentir saudades antecipadas. Tentei brincar - mas as saudades são reais.
ResponderExcluirUm grande abraço.
Meu caro Renato...
ResponderExcluirProfessor é sempre professor, até escrevendo comentário em blog de seus ídolos...
Digo isso, pois quero aprender sempre e, professor de repente, é aquele que aprende, não é?
Tenho um respeito enorme por seu trabalho, amo aquilo que você escreve!
Hoje, falando aos meus alunos, disse que gostaria de estar prá sempre com eles, em uma sala de aula, no jardim do campus,nos laboratórios...
Trabalhar com aquilo que gostamos é uma benção!
Agora, lendo você... Penso: Queria ter mais tempo! Quem sabe, se eu não ficasse tanto no colégio, poderia encontrar mais tempo para essa delícia que é ler seus textos!
Só essa maravilha de blog para fazer a Mimi pensar em aposentadoria!
Emocionou a sua sensibilidade descrevendo o seu amigo, meu companheiro de tantos anos!
Agradeço esse carinho!
Beijos e escreva mais, escreva sempre!
Grande Renato...só você pra retratar o nosso velho "mestre" com tanto carinho e compreensão.
ResponderExcluirGrande Renato.
Beijos.
Parabéns Renato. O talento, a inteligência e o bom gosto do velho Oscar são de minha mais profunda admiração. Mas sua voz é incomparável. Você o retrata com pincel fino.
ResponderExcluirDédo