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CARANDIRU, impressões de um visitante

Abriram-se as portas do Carandiru e uma grande horda de tribos das mais diversas origens afluiu para ver, com os próprios olhos, como viviam os excluídos da história. Com os próprios olhos tem um sentido relevante, pois ver com os olhos alheios pode implicar em digerir leituras diferentes, com base em narrativas carregadas de emoções, visões místicas, espiritualistas ou materialistas dos fatos. Afinal, como diz Walter Benjamim, cada narrador carrega nas suas tintas, deixando no vaso as marcas de suas próprias mãos.
Numa longa fila, estavam jovens, brancos, negros, mestiços, homens, mulheres, católicos, protestantes, leigos, religiosos, piedosos ou sádicos. Todos esperavam ansiosos para conhecer os labirintos de um dos maiores centros penitenciários do país, aonde chegaram a viver (será?) mais de 7 mil presos. O ambiente ainda guardava um cheiro meio envelhecido de seres humanos que ali se amontoavam. Celas sujas, com roupas velhas abandonadas, revistas, jornais, papéis e alguns utensílios ainda pareciam sugerir que os seus donos voltariam a qualquer momento para retomar os seus restos de memória que ficaram.
Em pequenos cubículos com mais ou menos dois metros por três, sobreviviam quatro a seis pessoas, onde, humanamente, o espaço é apenas suficiente para uma. Mas os seus habitantes reconstruíam o espaço, adaptando-o às mínimas necessidades, criando condições de “conforto” dentro das possibilidades. Uma estante, um box para o banheiro, a pintura do time mais popular na parede, frases de conteúdo moral escritas caprichosamente nas paredes no teto. Enfim, é o ser humano criando condições de adaptabilidade em um ambiente extremamente insalubre e inóspito.
As pinturas nas paredes sugerem a fuga da solidão e o desejo de deixar uma marca para a posteridade. Paisagens bucólicas, algumas até com alguma técnica, pareciam simbolizar o desejo de libertação, da busca do paraíso perdido, principalmente para aqueles que não dispunham de janelas que possibilitassem avistar o horizonte, mesmo de uma cidade degradada e poluída. A religiosidade parecia presente na maioria das celas, com desenhos de santos, orações escritas nas paredes, indicando que as pessoas, apesar dos crimes que cometeram, ainda guardavam o medo mítico do purgatório, obrigando-as a fazer a expiação diária. Versos desconexos cujos sentidos somente a presença dos seus autores poderia dar uma luz para sua compreensão, decoravam algumas celas. Imaginei que aquelas palavras eram vistas diariamente e, talvez, com a explicação dos autores, poderiam adquirir as conotações mais diversas, aliviando corações amargurados pela solidão.

Pelo burburinho, a maioria dos visitantes acreditava que poderia ver, através do espaço de concreto, corpos jogados, corpos insones vagando pelos corredores, ou tentando encontrar algum sentido para a vida entre quatro paredes e o calor das noites de verão, onde o ar seria insuficiente para tanta gente. Outros diziam ter visto fantasmas dos mortos da grande chacina vagando pelas celas e corredores, atropelando os visitantes. Outros viam movimentos e ouviam sinistros barulhos nas celas, como as portas se fechando. Havia, entre os visitantes, expressões de medo, de piedade e de terror. A maioria registrava apenas com os olhos as cenas das celas sem vida, outros fotografavam compulsivamente o espaço para o registro histórico pessoal, como um fetiche para ser rememorado no futuro. Nos pátios onde os presos encontravam raros momentos de liberdade, quando podiam olhar para o céu e se banharem ao sol, parecia ser possível ainda ouvir as palavras de conforto, os risos, os choros dos familiares que vinham visitá-los. Eram momentos de esperança em que a solidão era interrompida por breves oportunidades de troca de afeto entre pais, filhos, esposas e amigos.
A história do Carandiru, a sua verdadeira história, talvez nunca venha a ser escrita. O que temos é a história oficial, dos gabinetes, dos visitantes, dos pesquisadores que por lá passaram e registraram pequenos flashes de vida. A verdadeira história do Carandiru esta nas conversas nas celas, nos corredores, na violência, nas lágrimas derramadas, nas orações, no sexo proibido, nas esperanças, no medo e na luta cotidiana para a sobrevivência. É a história oral dos esquecidos que ficará presente nas memórias dos seus entes mais íntimos, cuja narrativa se fará nas alcovas subterrâneas, quando a dor estiver se dissipando e for permitido o uso da palavra.
Aviões decolavam do aeroporto próximo com um barulho ensurdecedor causando a impressão de que tudo iria pelos ares, gerando apreensão e medo nos visitantes que pisavam o solo numa mistura de respeito e temor. Ninguém tocava em nada, o medo da contaminação parecia dominar a todos, pois se acreditava, pelas conversas sorrateiramente ouvidas, que os objetos e as paredes estavam repletos de doenças perigosamente transmissíveis. Mas havia algo além, que é o medo do Estado, o medo do poder policial, cuja força simbólica ainda estava lá. Ninguém, nem mesmo os homens livres, pareciam estar a salvo da ameaça à liberdade. É provável que sejamos eternos prisioneiros dos ditadores, do purgatório, dos opressores e dos campos de concentração, ainda que existam apenas difusamente em nossas memórias. A verdadeira liberdade somente será possível quando nos livrarmos desse poder ameaçador cujas armas mais poderosas são os tentáculos que deitam raízes profundas em nosso inconsciente.
Os homens, como escreve Halbwachs em Memória Coletiva, não são apenas o espaço material onde eles se agrupam, mas também, e, principalmente, as relações invisíveis, sejam elas econômicas, sociais e religiosas. Assim, nas celas vazias de homens e de relações, as memórias estavam incompletas, pois não estavam presentes as relações que existiam entre os seus habitantes. E, ali, as relações seriam fundamentais, pois a exigüidade do espaço obrigaria os moradores a uma negociação constante sobre os direitos de cada um, sob o risco de se chegar a conflitos de proporções imprevisíveis. Os papéis de cada um eram construídos e reconstruídos no dia a dia das relações cotidianas. A vida econômica estava presente e a moeda de troca podia ser o cigarro ou algum privilégio qualquer. Nas prisões, os direitos são estabelecidos por regras próprias, onde não valem aquelas dos homens livres, mas há um respeito pela palavra empenhada até que fatos novos não a atropelem. Cada cela seria um subsistema quase fechado de relações, que só se abriria no espaço público da penitenciária, o pátio, onde todos poderiam usufruir do sol e de relações mais amplas. As relações com o meio exterior, excetuando as afetivas com o grupo familiar e de amigos, seriam mais complexas e dependeriam de códigos e metáforas para serem concretizadas em suas formas políticas e econômicas.
Enfim, é previsível que o sistema de relações nas novas unidades prisionais deve estar sendo construído pari passu, com negociações que envolvem novos direitos, novos deveres em novos espaços, com novas relações afetivas e, principalmente, políticas que definirão as condições de sobrevivência. Com unidades menores, a teia de relações existente no Carandiru foi desconstruída, fragmentada, e dependerá de habilidades de articulação e de adaptação para tornar possíveis novos projetos de vida. Mas a memória do Carandiru ainda permanecerá como símbolo do medo, para quem estava lá dentro ou do lado de fora. Mesmo depois de transformado em área de lazer, escolas, locais de trabalho, ficará presente, para sempre, enquanto perdurar a capacidade humana de narrar suas memórias, reais ou não, o medo do Carandiru.

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