São Paulo: ecoam passos na memória.
Não nasci na cidade de São Paulo, mas é como se tivesse nascido. Vindo do interior com dois anos de idade e tenho a vaga impressão de que abri meus olhos pela primeira vez diante daquela imensidão de prédios. Ali é o Martinelli, meu filho! Olha que grande! Dizia meu pai orgulhoso de estar na maior cidade do Brasil. Atravessávamos o viaduto do Chá e víamos aquele vale imenso para meus olhos de menino. Tomávamos o bonde que cortava ruas arborizadas e naquela época ainda pouco movimentadas, onde homens e mulheres elegantes transitavam apressados. São Paulo não pode parar! Era o lema seguido por todos. A ideologia do movimento contínuo em busca do progresso. Os forasteiros também eram cooptados rapidamente e saiam freneticamente em busca do “ouro”. Italianos, portugueses, japoneses, mineiros, paranaenses, nordestinos de todos os matizes se transformavam rapidamente em paulistanos no ritmo de trabalho, no desejo de vencer, no jeito de andar, ao adotar um time de futebol e na cerveja preferida.
O velho Mappin onde compramos nossa primeira televisão, uma Invictus que raramente saia do conserto, era uma referência. As prestações eram sagradas e todos os meses lá estava eu com meu pai para fazer o pagamento. Subíamos a General Carneiro, passávamos pela Rua Direita com a sua elegante Casa Kosmos e atravessávamos o viaduto do Chá. Uma enxurrada de gente vindo de todos os lados e a mão firme do meu pai me guiava, enquanto meus olhos se perdiam entre os prédios e lojas. Nada tão encantador como o teatro municipal, com sua arquitetura imponente, mais parecendo um grande palácio. Não menos encantador aos meus olhos era a velha estação da Luz, com sua arquitetura inglesa do final do século XIX. Meus olhos se deliciavam impressionados com as escadarias, com os enormes bancos de madeira maciça, os corrimãos de ferro e os funcionários com seus uniformes que pareciam impecáveis (ou não eram?).
Depois, já adolescente, percorria as ruas do centro, passando horas nas livrarias, principalmente na Brasiliense, na Barão de Itapetininga, onde, em pé, conseguia a proeza de ler um ou mais capítulos de algum livro interessante, até que os vendedores me intimassem a desocupar o espaço. Os croquetes na Salada Paulista, na Avenida Ipiranga, imortalizada por Caetano Velloso, eram imbatíveis, mesmo saboreando-os em pé, sem nenhum conforto. A Esfiha aberta, regada a limão num restaurante na São João, era o prenúncio dos fast-foods a lá árabe, programa imperdível aos sábados depois do cinema. A velha cidade dos cines Gazetinha, Belas Artes, Bijou, possibilitou encontros inesquecíveis com Buñel, Costa Gravas, Bergman, Kurosawa entre outros.
E o futebol! Quantas lembranças! Nas belas tardes paulistanas ensolaradas de domingo, atravessávamos a cidade para chegar ao Pacaembu. O coração batendo forte e só acreditava mesmo depois de estar sentado nas arquibancadas podendo avistar o grande tapete verde onde poderia ver o craque do século, o Pelé jogar contra meu pobre e sofredor Corinthians. Eram momentos inesquecíveis e hoje tenho coragem de confessar: torcia pelo Pelé fazer as suas jogadas de mestre, mesmo contra o meu time. Todas as vezes que fui assistir Santos x Corinthians, graças ao meu padrinho que vinha do interior todos os meses só para ver o rei jogar, o meu time perdia e eu não sabia se ficava triste ou alegre. Mas como nunca fui alegre nem triste, valia mesmo a aventura.
Anos depois, em plena ditadura, lá estava eu de novo participando de comícios, passeatas e bradando contra a ditadura insensível, contra o medo. As palavras de ordem, o pavor da polícia secreta, amigos mortos, amigos torturados e esperanças perdidas. Era uma cidade que exalava terror e sempre havia a impressão de que os homens do temível Deops estavam em todas as esquinas farejando como cães de caça, algum possível inimigo do regime. Era quase um clima kafkiano, pois as pessoas se sentiam perseguidas, acuadas, espionadas. Às vezes alguém, no meio da praça, começava a falar alto criticando os militares. Cuidado! Diziam os mais experientes. São agentes disfarçados para atrair incautos. A cidade parecia triste aos meus olhos, mas não era aos olhos de todos. Aos olhos distantes, não comprometidos, ela seguia seu rumo, em direção ao progresso contínuo. Um prefeito, desses nomeados, ousou dizer: “São Paulo precisa parar”. Ele encerrou sua carreira política mais cedo pelo “sacrilégio”. Mas a ditadura passou e nossa cidade continuou seu caminho. Só não sei se ficou mais democrática, mas talvez mais libertária, mais anárquica, mais doida, mais desvairada.
Hoje com milhões de carros despejados em suas ruas, a cidade tornou-se mais dura, mais mecânica, mais impessoal, mais suja, mas ainda é possível descobrir alguma beleza que insiste em fazer-se notar apesar de tudo. Num destes dias, perdido no centro velho, olhando do prédio da Unesp, na praça da Sé, pude experimentar o êxtase de ver, ainda que sutilmente, uma bela paisagem, mesmo que machucada por anos a fio. A cidade parecia dizer ao menino que ainda a tinha na memória: “Eu estou aqui. Tenho pouco a lhe dar, pois me tiraram quase tudo. Mas o que me resta, ainda é de todos, e eu não me importo em dividir”.
Ainda ecoam passos na memória, sons que se perdem nos labirintos, como a música Quarto Centenário, que eu, menino do interior, perdido na cidade grande, ainda ouço. Música que parece renascer para os meus sentidos como o dia da redenção da pequena vila que se tornou o ponto de encontro de milhões de seres humanos. Pessoas vindas de todas as partes do mundo, com inúmeras línguas e culturas, contracenando numa intensa torre de babel como num teatro cotidiano. Enfim, uma cidade que se pretende democrática, excludente, humana, desumana, solidária, egoísta, pacífica, violenta, global e paradoxal.
Não nasci na cidade de São Paulo, mas é como se tivesse nascido. Vindo do interior com dois anos de idade e tenho a vaga impressão de que abri meus olhos pela primeira vez diante daquela imensidão de prédios. Ali é o Martinelli, meu filho! Olha que grande! Dizia meu pai orgulhoso de estar na maior cidade do Brasil. Atravessávamos o viaduto do Chá e víamos aquele vale imenso para meus olhos de menino. Tomávamos o bonde que cortava ruas arborizadas e naquela época ainda pouco movimentadas, onde homens e mulheres elegantes transitavam apressados. São Paulo não pode parar! Era o lema seguido por todos. A ideologia do movimento contínuo em busca do progresso. Os forasteiros também eram cooptados rapidamente e saiam freneticamente em busca do “ouro”. Italianos, portugueses, japoneses, mineiros, paranaenses, nordestinos de todos os matizes se transformavam rapidamente em paulistanos no ritmo de trabalho, no desejo de vencer, no jeito de andar, ao adotar um time de futebol e na cerveja preferida.
O velho Mappin onde compramos nossa primeira televisão, uma Invictus que raramente saia do conserto, era uma referência. As prestações eram sagradas e todos os meses lá estava eu com meu pai para fazer o pagamento. Subíamos a General Carneiro, passávamos pela Rua Direita com a sua elegante Casa Kosmos e atravessávamos o viaduto do Chá. Uma enxurrada de gente vindo de todos os lados e a mão firme do meu pai me guiava, enquanto meus olhos se perdiam entre os prédios e lojas. Nada tão encantador como o teatro municipal, com sua arquitetura imponente, mais parecendo um grande palácio. Não menos encantador aos meus olhos era a velha estação da Luz, com sua arquitetura inglesa do final do século XIX. Meus olhos se deliciavam impressionados com as escadarias, com os enormes bancos de madeira maciça, os corrimãos de ferro e os funcionários com seus uniformes que pareciam impecáveis (ou não eram?).
Depois, já adolescente, percorria as ruas do centro, passando horas nas livrarias, principalmente na Brasiliense, na Barão de Itapetininga, onde, em pé, conseguia a proeza de ler um ou mais capítulos de algum livro interessante, até que os vendedores me intimassem a desocupar o espaço. Os croquetes na Salada Paulista, na Avenida Ipiranga, imortalizada por Caetano Velloso, eram imbatíveis, mesmo saboreando-os em pé, sem nenhum conforto. A Esfiha aberta, regada a limão num restaurante na São João, era o prenúncio dos fast-foods a lá árabe, programa imperdível aos sábados depois do cinema. A velha cidade dos cines Gazetinha, Belas Artes, Bijou, possibilitou encontros inesquecíveis com Buñel, Costa Gravas, Bergman, Kurosawa entre outros.
E o futebol! Quantas lembranças! Nas belas tardes paulistanas ensolaradas de domingo, atravessávamos a cidade para chegar ao Pacaembu. O coração batendo forte e só acreditava mesmo depois de estar sentado nas arquibancadas podendo avistar o grande tapete verde onde poderia ver o craque do século, o Pelé jogar contra meu pobre e sofredor Corinthians. Eram momentos inesquecíveis e hoje tenho coragem de confessar: torcia pelo Pelé fazer as suas jogadas de mestre, mesmo contra o meu time. Todas as vezes que fui assistir Santos x Corinthians, graças ao meu padrinho que vinha do interior todos os meses só para ver o rei jogar, o meu time perdia e eu não sabia se ficava triste ou alegre. Mas como nunca fui alegre nem triste, valia mesmo a aventura.
Anos depois, em plena ditadura, lá estava eu de novo participando de comícios, passeatas e bradando contra a ditadura insensível, contra o medo. As palavras de ordem, o pavor da polícia secreta, amigos mortos, amigos torturados e esperanças perdidas. Era uma cidade que exalava terror e sempre havia a impressão de que os homens do temível Deops estavam em todas as esquinas farejando como cães de caça, algum possível inimigo do regime. Era quase um clima kafkiano, pois as pessoas se sentiam perseguidas, acuadas, espionadas. Às vezes alguém, no meio da praça, começava a falar alto criticando os militares. Cuidado! Diziam os mais experientes. São agentes disfarçados para atrair incautos. A cidade parecia triste aos meus olhos, mas não era aos olhos de todos. Aos olhos distantes, não comprometidos, ela seguia seu rumo, em direção ao progresso contínuo. Um prefeito, desses nomeados, ousou dizer: “São Paulo precisa parar”. Ele encerrou sua carreira política mais cedo pelo “sacrilégio”. Mas a ditadura passou e nossa cidade continuou seu caminho. Só não sei se ficou mais democrática, mas talvez mais libertária, mais anárquica, mais doida, mais desvairada.
Hoje com milhões de carros despejados em suas ruas, a cidade tornou-se mais dura, mais mecânica, mais impessoal, mais suja, mas ainda é possível descobrir alguma beleza que insiste em fazer-se notar apesar de tudo. Num destes dias, perdido no centro velho, olhando do prédio da Unesp, na praça da Sé, pude experimentar o êxtase de ver, ainda que sutilmente, uma bela paisagem, mesmo que machucada por anos a fio. A cidade parecia dizer ao menino que ainda a tinha na memória: “Eu estou aqui. Tenho pouco a lhe dar, pois me tiraram quase tudo. Mas o que me resta, ainda é de todos, e eu não me importo em dividir”.
Ainda ecoam passos na memória, sons que se perdem nos labirintos, como a música Quarto Centenário, que eu, menino do interior, perdido na cidade grande, ainda ouço. Música que parece renascer para os meus sentidos como o dia da redenção da pequena vila que se tornou o ponto de encontro de milhões de seres humanos. Pessoas vindas de todas as partes do mundo, com inúmeras línguas e culturas, contracenando numa intensa torre de babel como num teatro cotidiano. Enfim, uma cidade que se pretende democrática, excludente, humana, desumana, solidária, egoísta, pacífica, violenta, global e paradoxal.
Que belo itinerario de memoria paulistana,parabens!Quantas saudades da SP civilizada de outrora.Semana passada fiz este mesmo itinerario,os predios pintados e restaurados,sem placas,luminosos,etc...mostram a boa arquitetura de outrora,porém quando olhamos para o nivel do chão,e assustador...farrapos humanos de todos os tipos nos chocam e estarrecem,nos dizem que alguma coisa esta errada.
ResponderExcluirRenato.
ResponderExcluirParabéns pela descrição tão bem detalhada da vida e lugares de São Paulo.Lendo seu artigo trasnportei-me pelos lugares citados,antes percorridos anos a fio por mim.Saudades...!!!
Abraços.