FÉRIAS NO INTERIOR E
OUTRAS HISTÓRIAS
Ao ler uma crônica do José de
Souza Martins sobre as férias no interior, tive a sensação de que perdi o trem.
Explico: há tempos pensei em escrever uma crônica com o mesmo tema e o velho
Professor Martins me passou a perna, no bom sentido, é claro. Acontece que ele,
como eu, morava em São Caetano do Sul, o C do ABC e também passávamos as férias
no interior e tomávamos o mesmo trem em direção à Estação da Luz e de lá para o
paraíso. Ele para Pinhalzinho, perto de Bragança Paulista e eu para Lavínia, na
Noroeste de São Paulo. A estação antiga tinha
um ar romântico talvez por conta do estilo que os ingleses, fundadores
da São Paulo Railways, trouxeram para o Brasil.
Tenho boas lembranças do
sociólogo cronista, além dos seus livros e artigos, como a palestra que ele
apresentou na Fundação Santo André nos anos 70 sobre a música caipira. Depois
de uma análise teórica sobre a diferença entre música caipira e música
sertaneja - que muita gente pensa que é a mesma coisa - e suas origens de
natureza antropológica, sociológica e econômica, ele ainda deu de brinde, para
a plateia, algumas modas de viola, num modesto toca-discos portátil, acompanhadas
de uma análise sociológica e antropológica. Lembro-me que foi emocionante ouvir o cateretê Boi de
Carro, em que o Tonico e Tinoco comparam a vida do boi de carro usado e abusado
nas lides da fazenda com a vida do peão, que são descartados no ocaso de suas
existências. O boi de carro ia para o matadouro e o velho peão ia viver de
favores, caso encontrasse alguém disposto a tal.
Mas voltemos às férias do
interior. O ritual era o mesmo descrito pelo Martins. Pegávamos o trem por
volta das sete horas da noite, com meu pai carregando as malas mais pesadas,
minha mãe contando os filhos (eram cinco) com medo de deixar alguém para trás.
Os preparativos eram sempre fascinantes. O tempo não passava até a hora de
embarcar em direção ao interior. Pegávamos o trem que ia até Bauru, onde
fazíamos a baldeação para o embarque em outra composição que ia até Andradina,
divisa com Mato Grosso, que naqueles tempos ainda não era do sul. Íamos sempre
de segunda classe ou classe econômica. Os bancos eram de madeira e doía o
traseiro, mas tudo valia a pena, pois as nossas almas de crianças não eram
pequenas.
Chegávamos a Bauru quase de
madrugada e quase em seguida embarcávamos num outro trem até Lavínia, uns
sessenta quilômetros depois de Araçatuba, a cidade onde os reis do café e do
Gado se defrontavam disputando poder. A música Rei do Gado menciona Ribeirão
Preto, mas há controvérsias. O rei do
café estaria engravatado fumando charuto cubano, acesos com notas miúdas de
cruzeiros e o rei do gado, que chegara com uma comitiva, trazendo nas
roupas a poeira da estrada.
Daí pra frente meus olhos de
menino curioso e sonhadores ficavam grudados na janela atentos à paisagem que
passava depressa por mil olhos que a seguiam nos vagões. Campos, plantações,
rios, lagoas. Aos poucos as casas iam aparecendo, um pouco esparsas, até chegar
aos pequenos centros urbanos que eram, naquela época, as cidades do interior.
As estações, ainda no velho estilo inglês, com seus arcos de ferro fundido e
madeira pintada de uma cor avermelhada, recebiam o trem, que ia apitando e
reduzindo a velocidade até parar para alguns viajantes descerem e outros
embarcarem. A cada parada, perguntávamos: “Chegamos Mãe?”. “Está longe, muito
longe, respondia ela pacientemente”. Eram mais de vinte horas de viagem, quando
não ocorria algum atraso.
Ao entardecer a pequena Lavínia
aparecia no horizonte, logo depois de Valparaíso. Cafezais dominavam a paisagem junto às
invernadas salpicadas de bois. Bem antes
meu pai e minha mãe já colocavam as malas e sacolas no chão. Novamente minha
mãe contava os filhos com atenção redobrada no caçula. Enfim chegávamos e
começava outra etapa da viagem.
Alugávamos uma charrete e
partíamos em direção à fazenda de um tio, onde ficávamos hospedados. A pequena
viagem era ainda mais emocionante do que a de trem. A lenta velocidade do
trotar do cavalo permitia apreciar bem melhor a paisagem. Às vezes ficávamos na
casa de algum parente próximo da cidade e íamos para a fazenda do Pau d’Alho ou
São Vicente no outro dia bem cedo.
O por do sol num horizonte que
não tinha fim era outro espetáculo inesquecível. A cada porteira de fazenda
(eram quase todas iguais), eu tinha a impressão de que estávamos chegando. Mas
qual o que! ainda estávamos longe da Pau D’alho. Enfim, quando menos se
esperava o charreteiro parava para abrir a porteira e entravamos na velha São
Vicente ou Pau D’Alho, por conta de uma velha árvore que ficava do outro lado
da porteira. Eram mais de dois quilômetros por um carreador cortando o cafezal
até a colônia, onde moravam os colonos, meeiros e parceiros e logo em seguida a
sede da fazenda.
Avisados por telegrama, já éramos
esperados com um delicioso jantar, que incluía galinha de Angola e o doce de
leite que só a Vicenza, minha prima e madrinha sabia fazer. A Vicenza era um
capítulo a parte. Criatura alegre, calorosa e generosa que fazia de tudo para
agradar seus hóspedes. Infelizmente ela já partiu, bem mais cedo do que deveria.
Ainda não havia eletricidade por
aqueles lados e jantávamos a luz de lampião a querosene, cuja fumaça ajudava a
espantar os pernilongos. Depois do jantar a conversa corria solta. Novidades sobre
os outros parentes, as colheitas, o preço do gado, política... Em pouco tempo
eu já estava dormindo sobre a mesa, tal o cansaço, reflexo da noite mal dormida
no trem. O sono era embalado por siri lampos, sapos e pássaros se acomodando
nas árvores.
O amanhecer era outra das
delícias esperadas. O gado mugindo no mangueirão, os pássaros festejando o dia,
o cheiro de café colhido na fazenda, socado, torrado e moído na casa grande. O
aroma e sabor eram especiais, bem superiores aos cafés gourmet que proliferam pelas
modernas cafeterias. O leite tinha gosto de leite, espumante, denso, encorpado,
um luxo. O pão, a manteiga, o queijo, feitos em casa, eram outras iguarias
impensáveis na cidade.
O Drummond escreveu um poema
sobre a sua infância em uma fazenda em Minas Gerais que termina dizendo que sua vida era bem mais interessante do que as
aventuras do Robinson Crusoé que ele estava lendo. Eu cá com meus botões, tenho a pretensão de
dizer que as minhas aventuras durante as férias na fazenda São Vicente eram
também bem mais interessantes do que o livro e também, que me desculpe o José
de Souza Martins, eram bem mais emocionantes do que as dele.
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