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A DESPEDIDA


A primavera havia chegado há poucos dias, mas a garoa fina e o frio continuavam. A festa estava mais para um bom vinho, mas quem é que poderia prever esse tempo maluco de uma região subtropical de transição. Mas a cerveja era das boas, o espetinho estava caprichado e o pernil estava exuberante. Mas boa mesmo era a conversa, conversa de uma juventude bela e sorridente, conversas de velhos resgatando o passado e lembrando que também não tem muito futuro. A vida é assim mesmo.  
Numa roda de homens com os cabelos grisalhos e brancos, um deles falou em alto e bom tom: “De repente a gente descobre que está velho! É assim mesmo, um dia você acorda e sente que as pernas não funcionam tão bem como antes, além de outras coisas. Ontem, incomodado às 7h por um barulho que não me deixava dormir, levantei furioso para xingar os operários que estavam martelando do lado do meu quarto, no terreno vizinho. Coloquei a escada para dar uma bronca, a escada escorregou e desabei. Fiquei estendido no chão até que alguém  me socorresse.  Foi aí que percebi que não sou mais o moço que pensava ainda ser;  caiu a ficha”.
Aquela conversa pode não ter sido muito agradável, pois ninguém gosta de ser lembrado que está ficando velho, mas o  amigo estava conformado e parecia não se preocupar muito com o passar do tempo. Porém, é bom ter o conforto de antigos companheiros para compartilhar a passagem do tempo. Pior é envelhecer sozinho, solitário. Lembrei-me das palavras de uma amiga na passagem dos seus oitenta anos: “Nada me faltará, pois tenho amigos”. Que palavras bonitas, que chegam a dar um calorzinho no coração.
 A festa era a despedida da filha de um velho e querido amigo.  A menina vai para a Austrália com o namorado e vai ficar por lá pelo menos um ano. O nosso amigo estava feliz pela filha ter feito a generosidade de convidar alguns dos seus velhos amigos para que não se sentisse isolado no meio da garotada. Ela vai para o outro lado do mundo. Quando estiver dormindo estaremos acordados e vice-versa. É um país imenso, maior do que o Brasil e tem apenas a população equivalente a do Estado de São Paulo. São novos horizontes, novas culturas, novas expectativas, outra língua e outros mais.
Os filhos crescem, vão cuidando das suas vidas, ganhando independência e vão deixando os velhos em seu mundo, em seu passado. Um mundo que mudou, um mundo diferente daquele que existia em outros tempos.  Os valores são outros, a música é outra, os medos são outros. São novos ditadores, novas opressões e novas incertezas. Mas nosso amigo estava feliz, apesar da partida da filha; fez o seu tradicional churro, riu, cantou, brincou. Mas será que na solidão do seu quarto não chorará baixinho para que ninguém ouça? Quem sabe. Lágrimas foram feitas para chorar e não para guardar.

Renato Ladeia

Comentários

  1. Renato, meu camarada.
    Fico feliz que você tenha voltado a escrever sua crônicas.
    Como já comentei, elas são um registro histórico, um marco.
    Essa, por exemplo, da "Despedida". Daqui a alguns anos quando voltarmos a relê-la ressurgirão em nossas memórias o 24 de setembro tão agradável.
    Só não concordo que a Lilian fez uma deferência ao convidar os amigos dos pais dela. Não, não. Ela os convidou porque vocês são, de fato, os tios e tias mais queridos dela.
    Isso me traz um tal orgulho que até esqueço que não dá pra ir pra Austrália assim como quem vai pra Santos.
    Grato por, mais uma vez, ser personagem de seus escritos sempre muito bem feitos.
    Abração, Zéca

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