Com bastante atraso escrevo sobre a minissérie Maysa, exibida na televisão. Confesso que pouco ou nada me liguei na cantora durante sua vida. No auge de sua carreira eu ainda era muito jovem para entender as suas canções de fossa. Na fase final ou na sua decadência, estava ligado na nova geração de compositores e cantores da fase áurea da MPB, como Caetano, Chico, Edu, Milton Nascimento, Tom Jobim entre outros. Lembro-me de uma revista de fotonovelas que apareceu lá em casa trazida pelas minhas irmãs mais velhas que contava a história da musa. Era a história típica de um conto de fadas. Uma moça da classe média casando com o sobrenome ícone do capitalismo nacional. Tinha tudo para dar certo se não fosse a música e a sua personalidade independente e boêmia. Um casamento dentro dos padrões tradicionais de uma família burguesa não conseguiu suportar a presença de uma vida cercada de holofotes, fofocas e notícias nos jornais. Artista famoso não tem vida privada e ponto final.
A sua morte trágica foi um choque, mesmo para aqueles que estavam distantes da cantora. Alguns dias depois estava no antigo Bar Samambaia, reduto de boêmios da cidade, tomando um bom chope quando um cantor de cabelos desalinhados e dentes salientes pediu licença ao público para falar sobre a próxima canção. “Esta é uma homenagem singela a uma das maiores cantoras do Brasil, Maysa”. O público ficou emocionado e aplaudiu bastante antes mesmo de ouvir a canção, cuja letra transcrevo:
“O tempo correu, repintou o passado
Na tela o apogeu de um sonho dourado
Navegou na ilusão desse viver
Viu o amor vingar sorrir e emudecer
Estou tão infeliz na dor que me invade
No peito cicatriz no coração, saudade...
Foi tão lindo o azul daquele céu
Que cedo escureceu
Desceu da noite um negro véu
Juntou-se ao mar e a brisa
Num triste adeus levou Maysa”.
Depois da canção, dignamente interpretada pelo cantor, o público aplaudiu de pé pedindo bis. O interprete avisou que a música havia sido composta naquela tarde juntamente com um amigo. No depoimento disse que já estava com a música na cabeça quando se encontrou com o parceiro, que rascunhou, numa mesa de bar, a letra no mesmo instante sobre um guardanapo de papel. O Luiz Tati disse, numa entrevista, que esse negócio de compositor escrever músicas em guardanapo é anedota. Como já pude testemunhar coisas deste tipo, posso afirmar que o moço está enganado.
Tempos depois conheci os autores. O músico e cantor, Saulo de Tarso e o letrista Sinésio Dozzi Tezza. O primeiro vivia da música, cantando de bar em bar para o seu sustento. O letrista tinha uma vida menos aventureira e ganhava o pão de cada dia como vendedor de produtos químicos. À noite curtia a boemia da cidade participando intensamente da vida cultural com incursões em festivais de música e no teatro.
A canção correu pela cidade e em todos os bares era tocada com ou sem a presença dos compositores. Há relatos de que a música foi ouvida no Rio de Janeiro e em Recife, mas nunca foi gravada e continua desconhecida do grande público e da maioria dos fãs da cantora. Um amigo que foi ao Japão me confidenciou que ouviu alguém cantá-la numa casa especializada em MPB na cidade de Tóquio. Non sei se vero, ma beni trovato, diria o Dozzi Tezza em seu dialeto meio Vêneto e meio caipira.
A minissérie me trouxe saudades da canção e fiquei imaginando se ela tivesse conseguido chegar aos ouvidos do diretor e filho da artista. Os dois desconhecidos autores poderiam ganhar a ribalta e os fãs poderiam ter a oportunidade de ouvir uma bela canção, resgatando o trabalho anônimo de artistas desconhecidos pela mídia. Soube depois que um amigo da época chegou a enviar o CD pelo correio, mas duvido que tenha chegado às mãos do diretor ou alguém influente.
Este é o nosso Brasil. Um país repleto de artistas que vivem no anonimato e com as gavetas repletas de canções que talvez nunca sejam ouvidas pelo grande público. Enquanto isso, a mediocridade campeia pelos meios de comunicação de massa. O artista Saulo de Tarso, pobre e sem muita saúde, ainda perambula pelas noites do ABC a procura de um palco para cantar e tocar seu violão. O Dozzi Tezza, felizmente, teve um futuro melhor, mas à custa de muito, muito trabalho numa pequena indústria, deixando as letras inspiradas apenas como objeto de lazer.
Os velhos boêmios já não freqüentam os mesmos bares e provavelmente Saulo de Tarso Azevedo não canta mais a sua mais “famosa” canção. No entanto, ela deve estar gravada no firmamento e a cantora dos belos olhos verdes deve ouví-la nas infinitas tardes da eternidade. Pode ser apenas um sonho, mas quem sobrevive sem isso?
Renato Ladeia
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