Pular para o conteúdo principal

O LOBISOMEM

Uma história assombrosa povoava minha imaginação de menino. Era sobre um português chamado Manoel Joaquim Quinquinello. Ele morava na fazenda de um tio, no interior de São Paulo com a mulher, dona Joaquina e seus filhos. A casa era uma tapera que ficava ao meio de um outeiro ao lado de um pequeno córrego que cortava a fazenda. Meus primos diziam que o seu Manoel virava lobisomem nas noites de lua cheia. Quando era visto na fazenda, estava sempre com um bode ao seu lado e um facão preso à cintura para cortar capim para alimentar seu fiel escudeiro. Lembro-me da primeira vez que vi o seu Manoel. Ele vinha com o seu bode ao lado, com enormes barbas brancas e esbravejando aos quatro ventos. Era uma figura sinistra, digna de assustar meninos, ainda mais com a lenda de que virava lobisomem. Meus primos mais velhos me assustaram mais ainda, avisando que ele iria me pegar. Meu coração disparou e não sabia se me agarrava aos primos ou saia em disparada. O Seu Manoel parou e perguntou: “Quem é o miúdo?”. “É o filho do tio Manoel”, respondeu um dos meus primos. “Oh raios! Como vai teu pai miúdo?” perguntou se dirigindo a mim. Meus primos se encarregaram de responder, pois eu não conseguia abrir a boca de tão assustado. A fama do seu Manoel vinha de um hábito que preservara desde que chegou a fazenda. Dormia durante quase todo o inverno e somente se levantava à noite para dar umas voltas. Cabia aos filhos e a mulher as tarefas de cuidar da lavoura e outros afazeres da casa. A lenda sobre a sua figura era criada pelos vizinhos, inconformados com seu modo de vida. Nas noites de lua cheia, muitos colonos ficavam espreitando a sua casa para ver a transformação, mas nunca ninguém viu de fato a transformação. Meu tio, um evangélico fundamentalista, se encarregava de destruir essa lenda e que ninguém viesse lhe contar tais bobagens, pois ele esbravejava “soltando os cachorros” naqueles que insistiam terem visto o “maligno”, meio homem, meio lobo. Seu Manoel era analfabeto e sempre que recebia cartas de sua família em Portugal, levava-as para que minha mãe as lesse para ele. Minha mãe contava que ele ficava acabrunhado depois da leitura, pois já não tinha mais esperanças de que voltaria para a terrinha. Como já estava muito velho e não tinha conseguido comprar suas próprias terras sentia-se um imigrante fracassado e condenado a ser enterrado em terras do além mar. Tempos depois o velho Manoel Joaquim veio a falecer, deixando a viúva, dona Joaquina, duas filhas moças e dois rapazes, um deles com um defeito no pé, o que o tornava quase inválido para o trabalho. Meu tio, viúvo, com quase setenta anos, deu-se a se engraçar pela moçoila que logo viu no velho uma oportunidade de mudar de vida. Logo depois se casaram e dona Joaquina, com os filhos, foi morar na casa grande. A viúva passou a responder pela cozinha e a filha dedicava-se a fazer chamegos no velho que se deitava na rede todas as tardes para contemplar seus campos. Uma vida de rainha para a estranha rapariga, filha de um lobisomem. Depois que a mãe morreu, precisou pegar no batente e cuidar da casa, coisa que não apreciava muito. Quando visitava meu tio e ele pedia que ela passasse um café, ela respondia: “Ora, pois, pois, será que ele quer mesmo meu velho?” A rapariga ainda deu um filho ao velho, que veio a se chamar Euzébio, um rapagão, que veio para dividir com os filhos do primeiro casamento, a bela e saudosa Fazenda São Vicente do Pau d’alho, por onde nas noites de lua cheia ainda hoje passeia um velho e solitário lobisomem lusitano. Pode ser invenção do povo, mas como dizem os espanhóis: “Não creio nas bruxas, mas que existem, existem”. Uma das irmãs da Dona Izabel morava no bairro da Penha e numa das visitas do meu tio, fui encarregado de acompanhá-lo na visita à cunhada. Foi uma longa viagem e de tristes lembranças. Meu tio atacado por uma velha bronquite, tinha acessos de tosse, o que deixava constrangido um adolescente. No bairro havia enormes pedras, que dava uma sensação de estar no interior. A casa da Dona Elvira era modesta, mas tinha uma filha bonita, com quem troquei olhares durante todo o tempo. Dormimos por lá e no outro dia bem cedo voltamos ao martírio da tosse do meu tio que precisava parar a cada vinte metros que andávamos. Na volta eu já não me importava muito com isso, pois os olhares da meiga rapariga ainda embriagavam minha cabeça de adolescente. Nada como começar a falar de lobisomem e terminar com as lembranças dos olhares de uma bela rapariga que inundou minha imaginação por um bom tempo. Renato Ladeia

Comentários

  1. Desde muito novinha eu sou encantada com a cultura francesa. E foi através do idioma francês que conheci a Maysa. Fiquei impressionada com a interpretação dela com Nem me quitte pas e pesquisei algumas coisas a seu respeito

    No entanto, foi com a minissérie que eu pude conhecer o outro lado (ainda que camuflado por questões de respeito à memória deal) desta cantora tão intensa.

    Hoje digo que sou uma apaixonada por Maysa Monjardim.

    Abraços!!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

FLORAS E FLORADAS

Você conhece alguma Flora? Eu conheci uma, mas não tenho boas lembranças. Ela morava no interior de São Paulo, na pequena Lavínia, minha terra natal. Era a costureira da minha prima e madrinha. Eu ainda era muito criança, mas ainda tenho uma visão clara de sua casa isolada, que ficava no final de uma estrada de terra, ao lado de um velho jequitibá. Era uma construção quadrada, pintada de amarelo e com muitas janelas. Pela minha memória, que pode ser falha, não me lembro de flores em seu quintal. Será que a Dona Flora não gostava de flores? Fui algumas vezes lá com a minha prima, para fazer algumas roupas, numa época em que passei alguns meses em sua companhia. Dona Flora era uma mulher madura e muito séria, que me espetava com o alfinete sempre que fazia a prova das roupas que costurava para mim. Foram poucas vezes, mas o suficiente para deixar uma lembrança amarga da costureira e do seu nome. Mas hoje Flora me lembra a primavera que está chegando e esbanjando cores apesar da chuva

JOSÉ DE ARRUDA PENTEADO, UM EDUCADOR

Num dia desses  visitava um sebo para passar o tempo, quando, surpreso, vi o livro Comunicação Visual e Expressão, do professor José de Arruda Penteado. Comprei o exemplar e pus-me a recordar os tempos de faculdade em que ele era professor e nosso mentor intelectual. Era uma figura ímpar, com seu vozeirão impostado e uma fina ironia. Rapidamente estreitamos contato e nas sextas-feiras saíamos em turma para tomar vinho e conversar. Era um dos poucos professores em que era possível criticar, sem medo, a ditadura militar. Penteado era um educador, profissão que abraçara com convicção e paixão. Seu ídolo e mestre foi o grande pedagogo Anísio Teixeira, que ele enaltecia com freqüência em nossos encontros semanais. Defendia um modelo de educação voltado para uma prática socialista e democrática, coisa rara naqueles tempos. Depois disso, soube que estava coordenando o curso de mestrado em Artes Visuais da Unesp e ficamos de fazer contato com o ilustre e inesquecível mestre. Mas o tempo
O DESAPARECIMENTO DE SULAMITA SCAQUETTI PINTO E já se foram sete anos que a Sulamita Scaquetti Pinto desapareceu. Não se sabe se ela estava triste, se estava alegre ou simplesmente estava sensível como diria Cecilia Meirelles.  Ia buscar o filho na escola e foi levada por outros caminhos até hoje desconhecidos. Ninguém sabe se perdeu o rumo, a memória, razão ou a vida. Simplesmente, a moça bonita, de belos olhos azuis nunca mais foi vista.          Os pais, os amigos e os parentes saíram pelas ruas perguntando a quem passava, mostrando a fotografia, mas ninguém viu. Alguns diziam que viram, mas não viram ou apenas acharam que era ela, mas não era. Participamos dessas desventuras quando tiveram notícias de que uma moça com a descrição da Sula havia aparecido num bairro distante. Era triste ver os pais desesperados por uma notícia da filha, com uma fotografia na mão, lembrando da tatuagem nas costas, dos cabelos loiros, dos olhos azuis, mas como de outras vezes, voltaram de mã